domingo, 26 de novembro de 2017

O medo da criança e sua persistência na vida adulta.


The Scream, by Edvard Munch. This version, executed in 1910 in tempera on cardboard, was stolen from the Munch Museum in 2004, and recovered in 2006.


Eu cresci imerso em uma família tradicional que viveu a maior parte de sua vida no campo, ou seja, todas as narrativas mais usadas para me manter longe dos perigos da vida faziam parte da minha educação. Coisas como, “não tome banho depois de comer, isso mata”, ou “nunca beba leite após comer manga, isso mata”, ou “não chegue perto do lago, pois a água te chama e você vai morrer afogado” ou ainda “não deixe o seu chinelo virado para baixo, ou sua mãe morrerá na mesma hora”. Essas máximas da cultura campesina ainda sobrevivem hoje em dia, principalmente nas pequenas cidades do interior. Mesmo sabendo que não passam de lendas mantidas pela tradição oral de tempos imemoriáveis, ainda tem gente que usa esse tipo de argumentos para justificar aos filhos o porquê eles devem fazer isso e não aquilo.

O mais assustador era que meus pais e avós sempre tinham uma comprovação concreta para deixar sua narrativa mais crível. “A Aninha morreu afogada, lembra? É porque ela foi na beira do açude e não resistiu ao chamado da água e entrou. ” Isso me assustava de uma tal maneira que só de pensar em passar perto de uma poça d’água eu já ficava receoso, afinal de contas eu conhecia a Aninha que morreu afogada. “O Luizinho morreu porque ele nunca obedecia sua mãe quando ela falava para ele não comer manga com leite”, poxa o Luizinho era meu vizinho. Não posso julgar hoje em dia no conforto da era da internet a educação que recebi de meus pais e avós, afinal creio que conseguiram me manter vivo durante os períodos mais turbulentos da minha vida. Nunca tive uma intoxicação alimentar, nunca tive uma congestão e nunca fui sequestrado por um tal “homem do saco”, personagem folclórico da região onde eu morava que atraia criancinhas com doces e coisas legais para depois mata-las e coloca-las no seu saco que carregava a toda parte. Sobrevivi graças ao medo que essas histórias me causavam. No entanto, hoje eu pareço pagar um preço um tanto caro por essa educação baseada no medo. Até hoje não sei nadar, pois morro de medo de água, para eu entrar em uma piscina tenho que comprovar que poderei permanecer em pé até no lugar mais fundo dela. Desenvolvi uma repulsa por leite interminável, simplesmente não tolero leite, para manter minha quantidade de cálcio em dia eu me alimento de seus derivados, mas nunca em seu estado natural. Hoje eventualmente tomo banho após o jantar, mas confesso que se eu pude evitar me sinto mito mais confortável. Pois após tomar banho depois de comer muito qualquer palpitação diferente já é um alarme para algo ruim que está prestes a acontecer.




Quando não tínhamos informações suficientes sobre as coisas e nossos pais queriam nos manter seguros essas histórias cumpriam bem seu papel, mas para crianças que já têm certa predisposição a sofrer de algum problema psíquico, que era o meu caso, essas histórias podem transformar essas crianças em adultos extremamente medrosos e limitados socialmente. Isso para não falar sobre os casos extremos de verdadeiras fobias crônicas que se instalam de forma irreversível nos indivíduos que foram criados sob essa pedagogia popular.

Há bases científicas para acreditar nessa interferência da criação infantil na vida adulta dos indivíduos. De acordo com uma pesquisa feita pela Harvard Medical School, 85% dos adultos com distúrbio de ansiedade sofrem sintomas fóbicos adquiridos durante a infância. Esse mesmo estudo feito com cerca de 250.000 pessoa ao redor do mundo revelou também que experiências precoces com situações de ansiedade tendem a se combinar e a se espalhar para outros tipos de distúrbios fóbicos. Por exemplo, se uma criança com seis anos de idade desenvolve uma fobia por cachorros, ela tem 5 vezes mais chances de desenvolver fobia social na sua adolescência do que uma criança que nunca teve medo de cachorro. E essa mesma criança tem 2.2 vezes mais chances de sofrer de depressão quando adulto. Ou seja, grosso modo, nossa vida psicológica adulta é moldada pelo quão medrosos nós fomos em nossa infância. (p.230) Nota-se que a aquisição de uma fobia na infância pode levar ao desenvolvimento de outra mais grave na adolescência que pode ser o pressagio de uma outra na vida adulta. Essa sucessão de distúrbios que se originam de outros é definida pela comunidade medica pelo termo “Comorbidade”. O jornalista americano Ron Kessler embasado nos estudos sobre comorbidade declarou que “ o medo de cachorro aos 5 ou 10 anos é importante não porque medo de cachorro prejudica sua qualidade de vida. Medo de cachorro é importante porque isso faz você 4 vezes mais suscetível a se tornar um indivíduo de 25 anos, deprimido, avesso aos estudos ou uma mãe solteira dependente de drogas. ” (230) é certo que a interferência das fobias infantis na vida adulta ainda é controversa necessitando de mais estudos acadêmicos sobre o tema, e mesmo que as palavras de Ron Kessler ainda possam ser consideradas exacerbadas, temos que admitir que sua preocupação é legítima. Quanto mais cedo diagnosticado o distúrbio de ansiedade e iniciado o tratamento correto, maiores as chances de termos uma vida adulta onde a ansiedade possa ser melhor administrada.  

No meu caso, ainda venho tentando descobrir o embrião de algumas fobias que me acompanham desde que me conheço, uma delas é um medo irracional de répteis, principalmente lagartos pequenos e serpentes. Simplesmente não posso nem pensar na existência dessas criaturas sem me arrepiar. Outra é uma fobia social que apesar de ocasionalmente controlada ainda me tira muitas oportunidades na vida. Sobre a fobia de lagartos, isso pode ser devido a um episódio que presenciei quando tinha lá meus 4 ou 5 anos quando uma lagartixa dessas de parede caiu na cabeça de minha mãe e ela se desesperou tanto que começou a correr pelo quintal como alguém que estivesse sendo perseguido pelo Michael Mayers. Não sei se eu já tinha esse medo antes, mas é a mais antiga memória de ver alguém em prantos por causa de um calango.


Sobre a fobia social creio que ainda tenho muito que descobrir, mas tenho algumas pistas, como sendo proeminente de um outro problema que hoje é classificado pelo manual estatístico de doenças psíquicas como “fobia de separação”, onde uma criança não suporta ser separada de seus pais. Eu definitivamente fui uma criança que seria diagnosticado com esse distúrbio se um psiquiatra atual me analisasse. Não suportava a ideia de ficar longe da minha mãe, pois meu pai havia falecido e creio que o medo de perdê-la foi amplificado a um nível doentio. Se levarmos em conta a pesquisa de Harvard citada acima, eu posso estar sofrendo hoje as consequências de uma fobia infantil que não foi resolvida e ela se ampliou de forma generalizada moldando meu comportamento na minha vida atual. Pode ser que o meus medos infantis tenham me tornado uma pessoa corajosa o suficiente para me mudar e viver sozinho e enfrentar as mazelas sociais que atingem um cidadão brasileiro de classe média-baixa, acelerar uma motocicleta em uma rodovia esburacada em plena tempestade, mas que não conseguiria entrar no meu próprio quarto se uma lagartixa estivesse grudada na parede ou até mesmo tremeria até os dentes só com o fato de ter que participar de um evento público onde a maioria das pessoas presentes me fossem desconhecidas. Mas como eu disse, esse ainda é um assunto complexo que estou trabalhando e postarei mais coisas a respeito.


Fontes:

  • Stossel, Scott. My Age of Anxiety - Fear, Hope, Dread and Search for Peace of Mind. Link amazon.
  • TRANSTORNOS DE ANSIEDADE: UM ESTUDO DE PREVALÊNCIA SOBRE AS FOBIAS ESPECÍFICAS E A IMPORTÂNCIA DA AJUDA PSICOLÓGICA. Disponível em PDF Em: file:///C:/Users/stanley/Downloads/2611-8228-1-PB.pdf. Acesso em: 26 de novembro de 2017.



André Stanley é escritor e professor de História, Inglês e Espanhol, autor do livro "O Cadáver", editor dos blogs: (Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher). Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital. 

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