domingo, 12 de abril de 2020

O ceticismo de Hamlet e os primórdios do pensamento científico




Hamlet é uma personagem ímpar da história da literatura, pois sozinho é o recipiente de várias reflexões do mundo moderno. A dúvida, a ética, a procrastinação, o questionamento, o pessimismo trágico, a bipolaridade e muitos outros temas são tratados no intervalo de 5 atos de sua tragédia. De alguma forma, Hamlet é a própria alegoria do que ocorria no mundo no momento de sua criação. É sobretudo cético, não crê facilmente nas coisas que lhe são ditas, por outro lado, desconfia gravemente que há uma trama ímpia arquitetada por seu tio, agora no trono, que há bem pouco tempo era ocupado pelo rei Hamlet, pai do protagonista desta tragédia. Tudo leva a crer que Claudio é um usurpador que tramou contra o rei e agora triunfa como soberano do trono dinamarquês e do leito da rainha Gertrudes, outrora sua cunhada. No entanto, o jovem príncipe Hamlet, mesmo impregnado de rancor e ódio por perder seu pai e ver sua mãe nas garras “incestuosas” de seu tio, esconde sua angústia pois, para ele não basta ter desconfiança, mas há que ter provas.

Ele busca, sobre todas as coisas, a confirmação de sua presunção, mas ao mesmo tempo teme que se sua tese for assim confirmada terá que indubitavelmente contestar a “história oficial” sobre a morte de seu pai. A versão oficial dizia que o Rei Hamlet – pai do príncipe Hamlet – foi morto picado por uma serpente enquanto dormia, e seu irmão Cláudio por amor ao reino da Dinamarca que permanecia sob constante ameaça da Noruega, assumiu o lugar de seu irmão desposando a rainha. Assim justifica o recém entronado rei Claudio, irmão do rei morto:

O jovem Fortinbrás,
Fazendo uma apreciação infeliz de nosso poderio,
Ou achando, talvez, que com a morte de nosso amado irmão
Nosso Estado se tenha desagregado ou desunido,
Apoiado na quimera de sua suposta superioridade,
Não para de nos acicatar com mensagens hostis
Exigindo a devolução das terras que seu pai perdeu
(Ato 1 – Cena II)
(SHAKESPEARE, 1998, p.9)

Hamlet sabe perfeitamente que haverá consequências drásticas, caso conteste a versão oficial narrada pelo novo rei e sua nova esposa Gertrudes, por outro lado, não pode viver com a imensa dúvida, que se direciona à uma dolorosa certeza, pois para ele parece incontestável que Cláudio é um traidor e usurpador do trono que por conseguinte, é seu por direito e eventualmente assim será se ele se mantiver passivo e deixar as coisas seguirem seu caminho natural, mas seu gênio denota desespero diante desta dúvida que ainda persiste. E ainda lamenta que sua mãe tenha, tão facilmente, caído em tentação e se entregado às garras deste usurpador, dessa forma o príncipe relata sua indignação:

Antes que o sal daquelas lágrimas hipócritas
Deixasse de abrasar seus olhos inflamados,
Ela casou. Que pressa infame,
Correr assim, com tal sofreguidão, ao leito incestuoso!
Isso não é bom, nem vai acabar bem.
(Ato 1- Cena II)
(SHAKESPEARE, 1998, p.13)


Podemos notar no cerne dessa trama uma aproximação em relação a visão Renascentista de questionar a todas as verdades estabelecidas e propagadas principalmente pela Igreja medieval. Hamlet parece ter chegado a conclusões inconvenientes para alguns, o que o tornava vulnerável. Exatamente assim foram formulados os novos pressupostos científicos que vieram à tona durante o Renascimento, através da observação empírica, da contestação das verdades estabelecidas e da prudência em relação a divulgação de suas conclusões. Desta forma ocorreu com Copérnico, Galileu e mais tragicamente com Giordano Bruno.

Copérnico
Baseado em cálculos feitos a partir da observação empírica, os estudos de Copérnico (1473-1543) apontavam para um modelo heliocêntrico que afirmava que o sol ficava no centro de um sistema onde os planetas o rodeavam, incluindo a Terra, o que ia de encontro ao modelo geocêntrico imposto pela Igreja católica.

Copérnico demorou mais de dez anos para publicar suas teorias, justamente pelo medo da perseguição religiosa, prudência mais do que justificável, afinal anos depois, Giordano Bruno (1548 -1600), contemporâneo de Shakespeare e Cervantes, sofre a pena máxima da Inquisição por defender a teoria heliocêntrica elaborada por Copérnico, além de pôr em questão todas as verdades impostas pela Igreja. Bruno foi condenado à morte pelo fogo, acusado de heresia e blasfêmia em 17 de janeiro de 1600.


Galileu Galilei
Podemos dizer que Galileu Galilei (1564-1642) teve uma conduta mais “hamletiana” ao “fingir” aceitar a recomendação da Igreja de não propagar mais a teoria heliocêntrica de Copérnico como uma verdade, mas sim, como uma mera hipótese – evitando desta forma uma possível condenação à morte – apesar de permanecer fiel às suas convicções e continuar estudando e publicando teses sobre o assunto de forma velada.

É justamente no “fingir” que nosso herói Hamlet encontra um ponto de fuga para sua situação peculiar de permanecer um príncipe herdeiro, mesmo com o rei já morto. A loucura que veremos em Hamlet é, por conseguinte, arquitetada, estratégica e necessária para o desenrolar da peça. Nosso príncipe talvez pudesse antever que seu destino fosse o mesmo de seu pai se agisse totalmente dentro do que pede a lógica e a racionalidade, portanto, sua loucura fingida, se torna um ato de extrema racionalidade para salvar sua vida e a melhor estratégia para alcançar seu objetivo maior de vingar o suposto assassinato do pai.


Hamlet não acreditou de início na aparição fantasmagórica de seu pai, descrita por Horácio. Este teve que confrontar o fantasma pessoalmente para confirmar a história de seu amigo e questionar o que fazia o fantasma de um rei morto ainda entre os vivos. Segundo a crença popular medieval, os espíritos mortos de forma ilegítima vagam entre os vivos a buscar justiça pela morte criminosa. Figura aqui ainda um resquício da crença medieval retomada por Shakespeare. Esta é a primeira vez que Hamlet é colocado a par da morte criminosa de seu pai executada pelo seu próprio irmão que agora ocupava o trono. No entanto, Hamlet ainda não parecia totalmente imbuído de certeza, precisava desesperadamente de uma confirmação mais tangível que evidenciasse a culpa de seu tio perante todos. Assim ele expõe seu ceticismo:

O demônio sabe bem assumir formas sedutoras
E, aproveitando minha fraqueza e melancolia,
– Tem extremo poder sobre almas assim –
Talvez me tente para me perder.
Preciso provas mais firmes do que uma visão.
(Ato 2 – Cena II)
(SHAKESPEARE, 1998, p.49)

Por isso nosso herói trágico permanece sob a máscara da loucura agindo nos bastidores para expor de forma inequívoca o cruel assassinato de seu pai. Sua próxima ação cirúrgica para expor o suposto rei usurpador revela o quão oportunista e engenhoso nosso príncipe é. Uma companhia de teatro chega à cidade e Hamlet decide usá-la para expor a história contada a ele pelo fantasma, assim expõe sua ideia:

Ouvi dizer
Que certos criminosos, assistindo a uma peça,
Foram tão tocados pelas sugestões das cenas,
Que imediatamente confessaram seus crimes;
Pois embora o assassinato seja mudo,
Fala por algum órgão misterioso. Farei com que esses atores
Interpretem algo semelhante à morte de meu pai
Diante de meu tio,
E observarei a expressão dele quando lhe tocarem
No fundo da ferida.
(Ato 3 – Cena II)
(SHAKESPEARE, 1998, p.48,49)

         A estratégia do príncipe Hamlet é fazer o rei assistir diante de todos sua própria execução ardilosa que levou à morte do rei. Como pudemos perceber nos seus dizeres, Hamlet se baseou em experiencias anteriores para elaborar sua metodologia para atingir a verdade. Hamlet até aqui se mostra um executor ardil de um plano minucioso, um manipulador de retóricas que resguardado por uma falsa loucura assume o papel de observador do espetáculo e analisa as reações alheias como um cientista cujo laboratório é a corte dinamarquesa.

O rei cogita enviar Hamlet à Inglaterra, envolto por autêntico temor aos empreendimentos de um “lunático”, segundo ele:

Não gosto do jeito dele; e não é seguro pra nós
Deixar campo livre a esse lunático. Preparem-se, portanto;
Vou despachar imediatamente as instruções
E ele partirá com vocês pra Inglaterra.
A situação atual de nosso reino não pode ser exposta
A perigos tão sérios como os que nascem a toda hora
Dessa estranha loucura.
(Ato 3- cena II)
(SHAKESPEARE, 1998, p.65)

Esta fala dirigida a Rosencrantz e Guildenstern, dois amigos de infância do príncipe, que foram chamados a “causa do reino” mostra um temor legítimo por parte do rei. “Não é seguro para nós” entenda-se este “nós” como o próprio interlocutor que se encontra inseguro pois sente a ameaça de ser pego em uma eventual sandice de seu sobrinho. Mais adiante, talvez numa tentativa de tornar essa necessidade um problema de Estado, usa o termo “nosso reino” que segundo ele “não pode ser exposto a perigos tão sérios”. Ou seja, esse discurso torna claro que a empreitada de Hamlet com a trupe teatral surtiu o efeito desejado pelo seu arquiteto. O rei parece desesperado. Desespero que nasce do fato de não poder condenar os atos de Hamlet de forma pública, afinal como ele próprio disse o príncipe está acometido de uma “estranha loucura”, além do fato de estar casado com a mãe do príncipe, que certamente reprovaria qualquer atitude condenatória em relação ao filho.

Bosch – O BARCO DOS LOUCOS - VÍRUS DA ARTE & CIA.
A Nave dos Loucos - Bosh
Neste trecho podemos perceber um trato comum em relação aos loucos desde os primórdios da renascença (século XIV), nos dizeres de Michel Foucault, “confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida.” (FOUCALT, 2019, p.11,12) Óbvio que no nosso caso estamos falando de um membro da nobreza europeia que se comporta fora dos padrões e não um desvalido que fica andando nu pela cidade, como era o caso dos loucos postos em navios para serem expurgados de suas cidades de origem, no entanto, a intenção é a mesma; enviar o príncipe em uma viagem além-mar para que preferivelmente não retorne ao reino da Dinamarca novamente.

No desenrolar dos acontecimentos, em um ato de extrema impulsividade de Hamlet, a necessidade de enviá-lo à Inglaterra se torna inexorável e urgente. Assim comunica o rei a Rosencrantz e Guildenstern:

Hamlet, na sua loucura, assassinou Polônio,
e o arrastou pra fora do quarto da Rainha.
Procurem-no; falem com ele calmamente –
E tragam o corpo pra capela.
(Ato 4 – Cena I)
(SHAKESPEARE, 1998, p.76)

A suspeita de Hamlet sobre a intenção de Cláudio tirá-lo de seu caminho para sempre se mostra genuína pois já no navio sob a guarda de seus dois amigos de infância, Hamlet novamente em uma empreita audaciosa manipula os acontecimentos e assim narra sua empresa ao seu fiel amigo Horácio que o encontra só, em retorno a Dinamarca:

Nesse golpe de audácia,
Meu medo dominando meus escrúpulos, violei
O selo do despacho solene. E encontrei aí, Horácio –
Oh, a canalhice real! , uma ordem precisa,
Alicerçada em muitas e variadas espécies de razões
Concernentes à segurança do rei da Dinamarca,
E também da Inglaterra, falando dos horrores
E fantasmas que surgiriam se eu continuasse vivo,
De modo que, à primeira leitura, e sem perda de tempo,
Não, nenhuma, nem mesmo a de afiar o machado,
Deviam me cortar a cabeça.
(Ato 5 – Cena II)
(SHAKEPEARE, 1998, p. 104)

Vemos que as ordens reais levadas por Rosencrantz e Guildenstern são claras e urgentes, “concernentes à segurança do rei da Dinamarca e também da Inglaterra”, ou seja, Claudio transferiu seu problema interno para uma solução diplomática final. Mas nosso herói, ao que tudo indica, ainda imbuído de suas faculdades ardilosas narra a seguinte conclusão a Horácio:

HAMLET: Estando assim preso na rede de velhacarias
E antes que eu pudesse enviar um prólogo ao meu cérebro
Este já tinha iniciado o drama – eu me sentei,
Inventei uma mensagem, escrevi-a com letra burilada
Como qualquer de nossos estadistas.
Eu, antigamente, considerava uma baixeza
Escrever com letra caprichada
E me esforcei o que pude
Para esquecer essa arte subalterna; mas nesse momento, amigo,
Ela me prestou um serviço inestimável. Queres saber agora
O teor da mensagem?
HORÁCIO: Claro, meu bom senhor.
HAMLET: O rei da Dinamarca faz um apelo premente
Já que o rei da Inglaterra é seu fiel tributário;
Já que o amor entre os dois deve florir como as palmas;
Já que a paz deve sempre trazer sua coroa dourada;
Servindo de união entre as duas amizades –
E muitos outros já-ques da maior importância –
Para que, visto e conhecido o conteúdo da carta,
Sem qualquer outra deliberação, grande ou pequena,
Seja dada morte aos portadores,
Não se lhes concedendo nem tempo para a confissão.
HORÁCIO: E como selou o escrito?
HAMLET: Ah, até nisso o céu me foi propício.
Eu tinha na bolsa o sinete de meu pai;
Cópia fiel do selo da Dinamarca;
Dobrei a folha como estava a outra;
Assinei-a, timbrei-a; coloquei-a no lugar da verdadeira,
Como as fadas trocam uma criança. No dia seguinte,
Aconteceu a abordagem – tudo o que vem depois
Já é de teu conhecimento.
(Ato 5 – Cena II)
(SHAKEPEARE, 1998, p.104,105)

Hamlet usa o termo “velhacaria” – “villanies no original” para descrever seu sentimento de estar aprisionado por uma teia de falcatruas protagonizadas pelo rei da Dinamarca, da qual só poderá sair vivo caso permaneça vigilante e sob o amparo da loucura planejar suas ações o que o faz ter a impressão de estar sempre no controle, e de certa forma Hamlet se gaba de ter uma ciência quase total de toda a trama que o envolve, note-se nas seguintes falas: “antes que eu pudesse enviar um prólogo ao meu cérebro. Este já tinha iniciado o drama” Hamlet intenta dizer que sua velocidade de raciocínio ultrapassa as concepções normais e sua capacidade de antever a verdade é quase instantânea. Como visto há pouco, Hamlet construiu um arcabouço hábil com sua retórica o que o levou a entender que está no controle das situações que ele próprio cria, no entanto, como veremos a seguir, a cada passo ardiloso que ele arquiteta, mais sua sensação de controle parece se desmoronar.

Oh, tríplice desgraça
Caia dez vezes triplicada sobre a cabeça maldita
Cuja ação criminosa privou você
De tua inteligência luminosa! Parem um momento a terra
Para que eu a aperte uma última vez em meus braços.
(Ato 5- Cena I)
(SHAKESPEARE, 1998, p.102)


Ofélia - Joahn Everett
Assim se expressa o príncipe ao perceber que o funeral do qual era testemunha, era na verdade, o funeral de sua amada Ofélia, cuja morte ele desconhecia, pois ocorreu enquanto e encontrava-se no exterior. Hamlet lança anátemas no causador da morte de sua amada, sem conceber que ele tem participação nesta empreita. Ofélia havia enlouquecido talvez ao notar que se encontrava desemparada na corte da Dinamarca, ao perder todos os seus laços de relacionamento, seu irmão Laertes fora para França e seu pai foi morto pelo seu amado príncipe enquanto espiava sua conversa com a rainha sua mãe, escondido atrás de uma cortina.

Hamlet a partir de então notou que seus atos dissimulados estavam sucessivamente gerando um rastro de mortes as quais fugiram do seu presumido controle. Em uma leitura mais contemporânea talvez começássemos a questionar se Hamlet realmente finge sua loucura ou se está dominado por ela ao ponto de ter se tornado um sociopata frio e calculista.

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Bye!


André Stanley é escritor e professor de História, Inglês e Espanhol, autor do livro "O Cadáver", editor dos blogs: (Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher). Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.

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