Hamlet
é uma personagem ímpar da história da literatura, pois sozinho é o recipiente
de várias reflexões do mundo moderno. A dúvida, a ética, a procrastinação, o
questionamento, o pessimismo trágico, a bipolaridade e muitos outros temas são
tratados no intervalo de 5 atos de sua tragédia. De alguma forma, Hamlet é a
própria alegoria do que ocorria no mundo no momento de sua criação. É sobretudo
cético, não crê facilmente nas coisas que lhe são ditas, por outro lado, desconfia
gravemente que há uma trama ímpia arquitetada por seu tio, agora no trono, que há
bem pouco tempo era ocupado pelo rei Hamlet, pai do protagonista desta tragédia.
Tudo leva a crer que Claudio é um usurpador que tramou contra o rei e agora
triunfa como soberano do trono dinamarquês e do leito da rainha Gertrudes, outrora
sua cunhada. No entanto, o jovem príncipe Hamlet, mesmo impregnado de rancor e
ódio por perder seu pai e ver sua mãe nas garras “incestuosas” de seu tio,
esconde sua angústia pois, para ele não basta ter desconfiança, mas há que ter
provas.
Ele busca, sobre todas
as coisas, a confirmação de sua presunção, mas ao mesmo tempo teme que se sua
tese for assim confirmada terá que indubitavelmente contestar a “história
oficial” sobre a morte de seu pai. A versão oficial dizia que o Rei Hamlet –
pai do príncipe Hamlet – foi morto picado por uma serpente enquanto dormia, e
seu irmão Cláudio por amor ao reino da Dinamarca que permanecia sob constante
ameaça da Noruega, assumiu o lugar de seu irmão desposando a rainha. Assim justifica
o recém entronado rei Claudio, irmão do rei morto:
O jovem Fortinbrás,
Fazendo uma apreciação
infeliz de nosso poderio,
Ou achando, talvez, que
com a morte de nosso amado irmão
Nosso Estado se tenha
desagregado ou desunido,
Apoiado na quimera de
sua suposta superioridade,
Não para de nos
acicatar com mensagens hostis
Exigindo a
devolução das terras que seu pai perdeu
(Ato 1 – Cena II)
(SHAKESPEARE, 1998, p.9)
Hamlet sabe perfeitamente
que haverá consequências drásticas, caso conteste a versão oficial narrada pelo
novo rei e sua nova esposa Gertrudes, por outro lado, não pode viver com a imensa
dúvida, que se direciona à uma dolorosa certeza, pois para ele parece
incontestável que Cláudio é um traidor e usurpador do trono que por conseguinte,
é seu por direito e eventualmente assim será se ele se mantiver passivo e deixar
as coisas seguirem seu caminho natural, mas seu gênio denota desespero diante
desta dúvida que ainda persiste. E ainda lamenta que sua mãe tenha, tão
facilmente, caído em tentação e se entregado às garras deste usurpador, dessa
forma o príncipe relata sua indignação:
Antes que o
sal daquelas lágrimas hipócritas
Deixasse de
abrasar seus olhos inflamados,
Ela casou.
Que pressa infame,
Correr
assim, com tal sofreguidão, ao leito incestuoso!
Isso não é
bom, nem vai acabar bem.
(Ato 1- Cena II)
(SHAKESPEARE, 1998, p.13)
Podemos notar no cerne
dessa trama uma aproximação em relação a visão Renascentista de questionar a
todas as verdades estabelecidas e propagadas principalmente pela Igreja
medieval. Hamlet parece ter chegado a conclusões inconvenientes para alguns, o
que o tornava vulnerável. Exatamente assim foram formulados os novos
pressupostos científicos que vieram à tona durante o Renascimento, através da
observação empírica, da contestação das verdades estabelecidas e da prudência
em relação a divulgação de suas conclusões. Desta forma ocorreu com Copérnico,
Galileu e mais tragicamente com Giordano Bruno.
Baseado em cálculos
feitos a partir da observação empírica, os estudos de Copérnico (1473-1543) apontavam
para um modelo heliocêntrico que afirmava que o sol ficava no centro de um
sistema onde os planetas o rodeavam, incluindo a Terra, o que ia de encontro ao
modelo geocêntrico imposto pela Igreja católica.
Copérnico demorou mais
de dez anos para publicar suas teorias, justamente pelo medo da perseguição
religiosa, prudência mais do que justificável, afinal anos depois, Giordano
Bruno (1548 -1600), contemporâneo de Shakespeare e Cervantes, sofre a pena
máxima da Inquisição por defender a teoria heliocêntrica elaborada por
Copérnico, além de pôr em questão todas as verdades impostas pela Igreja. Bruno
foi condenado à morte pelo fogo, acusado de heresia e blasfêmia em 17 de
janeiro de 1600.
Podemos dizer que
Galileu Galilei (1564-1642) teve uma conduta mais “hamletiana” ao “fingir”
aceitar a recomendação da Igreja de não propagar mais a teoria heliocêntrica de
Copérnico como uma verdade, mas sim, como uma mera hipótese – evitando desta
forma uma possível condenação à morte – apesar de permanecer fiel às suas convicções
e continuar estudando e publicando teses sobre o assunto de forma velada.
É justamente no
“fingir” que nosso herói Hamlet encontra um ponto de fuga para sua situação
peculiar de permanecer um príncipe herdeiro, mesmo com o rei já morto. A
loucura que veremos em Hamlet é, por conseguinte, arquitetada, estratégica e
necessária para o desenrolar da peça. Nosso príncipe talvez pudesse antever que
seu destino fosse o mesmo de seu pai se agisse totalmente dentro do que pede a
lógica e a racionalidade, portanto, sua loucura fingida, se torna um ato de
extrema racionalidade para salvar sua vida e a melhor estratégia para alcançar
seu objetivo maior de vingar o suposto assassinato do pai.
Hamlet não acreditou de
início na aparição fantasmagórica de seu pai, descrita por Horácio. Este teve
que confrontar o fantasma pessoalmente para confirmar a história de seu amigo e
questionar o que fazia o fantasma de um rei morto ainda entre os vivos. Segundo
a crença popular medieval, os espíritos mortos de forma ilegítima vagam entre
os vivos a buscar justiça pela morte criminosa. Figura aqui ainda um resquício
da crença medieval retomada por Shakespeare. Esta é a primeira vez que Hamlet é
colocado a par da morte criminosa de seu pai executada pelo seu próprio irmão
que agora ocupava o trono. No entanto, Hamlet ainda não parecia totalmente
imbuído de certeza, precisava desesperadamente de uma confirmação mais tangível
que evidenciasse a culpa de seu tio perante todos. Assim ele expõe seu
ceticismo:
O demônio
sabe bem assumir formas sedutoras
E,
aproveitando minha fraqueza e melancolia,
– Tem
extremo poder sobre almas assim –
Talvez me
tente para me perder.
Preciso
provas mais firmes do que uma visão.
(Ato 2 – Cena II)
(SHAKESPEARE, 1998, p.49)
Por isso nosso herói
trágico permanece sob a máscara da loucura agindo nos bastidores para expor de
forma inequívoca o cruel assassinato de seu pai. Sua próxima ação cirúrgica
para expor o suposto rei usurpador revela o quão oportunista e engenhoso nosso
príncipe é. Uma companhia de teatro chega à cidade e Hamlet decide usá-la para
expor a história contada a ele pelo fantasma, assim expõe sua ideia:
Ouvi dizer
Que certos criminosos,
assistindo a uma peça,
Foram tão tocados pelas
sugestões das cenas,
Que imediatamente
confessaram seus crimes;
Pois embora o
assassinato seja mudo,
Fala por algum órgão
misterioso. Farei com que esses atores
Interpretem algo
semelhante à morte de meu pai
Diante de meu tio,
E observarei a
expressão dele quando lhe tocarem
No fundo da ferida.
(Ato 3 – Cena II)
(SHAKESPEARE, 1998,
p.48,49)
A
estratégia do príncipe Hamlet é fazer o rei assistir diante de todos sua
própria execução ardilosa que levou à morte do rei. Como pudemos perceber nos
seus dizeres, Hamlet se baseou em experiencias anteriores para elaborar sua
metodologia para atingir a verdade. Hamlet até aqui se mostra um executor ardil
de um plano minucioso, um manipulador de retóricas que resguardado por uma
falsa loucura assume o papel de observador do espetáculo e analisa as reações
alheias como um cientista cujo laboratório é a corte dinamarquesa.
O rei cogita enviar
Hamlet à Inglaterra, envolto por autêntico temor aos empreendimentos de um
“lunático”, segundo ele:
Não gosto do
jeito dele; e não é seguro pra nós
Deixar campo
livre a esse lunático. Preparem-se, portanto;
Vou
despachar imediatamente as instruções
E ele
partirá com vocês pra Inglaterra.
A situação
atual de nosso reino não pode ser exposta
A perigos
tão sérios como os que nascem a toda hora
Dessa
estranha loucura.
(Ato
3- cena II)
(SHAKESPEARE,
1998, p.65)
Esta fala dirigida a Rosencrantz
e Guildenstern, dois amigos de infância do príncipe, que foram chamados a “causa
do reino” mostra um temor legítimo por parte do rei. “Não é seguro para nós”
entenda-se este “nós” como o próprio interlocutor que se encontra inseguro pois
sente a ameaça de ser pego em uma eventual sandice de seu sobrinho. Mais
adiante, talvez numa tentativa de tornar essa necessidade um problema de Estado,
usa o termo “nosso reino” que segundo ele “não pode ser exposto a perigos tão
sérios”. Ou seja, esse discurso torna claro que a empreitada de Hamlet com a
trupe teatral surtiu o efeito desejado pelo seu arquiteto. O rei parece
desesperado. Desespero que nasce do fato de não poder condenar os atos de
Hamlet de forma pública, afinal como ele próprio disse o príncipe está
acometido de uma “estranha loucura”, além do fato de estar casado com a mãe do
príncipe, que certamente reprovaria qualquer atitude condenatória em relação ao
filho.
A Nave dos Loucos - Bosh |
Neste trecho podemos perceber
um trato comum em relação aos loucos desde os primórdios da renascença (século
XIV), nos dizeres de Michel Foucault, “confiar o louco aos marinheiros é com
certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da
cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de
sua própria partida.” (FOUCALT, 2019, p.11,12) Óbvio que no nosso caso estamos
falando de um membro da nobreza europeia que se comporta fora dos padrões e não
um desvalido que fica andando nu pela cidade, como era o caso dos loucos postos
em navios para serem expurgados de suas cidades de origem, no entanto, a
intenção é a mesma; enviar o príncipe em uma viagem além-mar para que
preferivelmente não retorne ao reino da Dinamarca novamente.
No desenrolar dos
acontecimentos, em um ato de extrema impulsividade de Hamlet, a necessidade de
enviá-lo à Inglaterra se torna inexorável e urgente. Assim comunica o rei a
Rosencrantz e Guildenstern:
Hamlet, na
sua loucura, assassinou Polônio,
e o arrastou
pra fora do quarto da Rainha.
Procurem-no;
falem com ele calmamente –
E tragam o
corpo pra capela.
(Ato 4 – Cena I)
(SHAKESPEARE, 1998, p.76)
A suspeita de Hamlet
sobre a intenção de Cláudio tirá-lo de seu caminho para sempre se mostra genuína
pois já no navio sob a guarda de seus dois amigos de infância, Hamlet novamente
em uma empreita audaciosa manipula os acontecimentos e assim narra sua empresa
ao seu fiel amigo Horácio que o encontra só, em retorno a Dinamarca:
Nesse golpe de audácia,
Meu medo dominando meus escrúpulos, violei
O selo do despacho solene. E encontrei aí, Horácio –
Oh, a canalhice real! –, uma ordem precisa,
Alicerçada em muitas e variadas espécies de razões
Concernentes à segurança do rei da Dinamarca,
E também da Inglaterra, falando dos horrores
E fantasmas que surgiriam se eu continuasse vivo,
De modo que, à primeira leitura, e sem perda de tempo,
Não, nenhuma, nem mesmo a de afiar o machado,
Deviam me
cortar a cabeça.
(Ato 5 – Cena II)
(SHAKEPEARE, 1998, p. 104)
Vemos que as ordens
reais levadas por Rosencrantz e Guildenstern são claras e urgentes,
“concernentes à segurança do rei da Dinamarca e também da Inglaterra”, ou seja,
Claudio transferiu seu problema interno para uma solução diplomática final. Mas
nosso herói, ao que tudo indica, ainda imbuído de suas faculdades ardilosas
narra a seguinte conclusão a Horácio:
HAMLET: Estando assim preso na
rede de velhacarias –
E antes que eu pudesse enviar um prólogo ao meu cérebro
Este já tinha iniciado o drama – eu me sentei,
Inventei uma mensagem, escrevi-a com letra burilada –
Como qualquer de nossos estadistas.
Eu, antigamente, considerava uma baixeza
Escrever com letra caprichada
E me esforcei o que pude
Para esquecer essa arte subalterna; mas nesse momento,
amigo,
Ela me prestou um serviço inestimável. Queres saber agora
O teor da mensagem?
HORÁCIO: Claro, meu bom senhor.
HAMLET: O rei da Dinamarca faz
um apelo premente –
Já que o rei da Inglaterra é seu fiel tributário;
Já que o amor entre os dois deve florir como as palmas;
Já que a paz deve sempre trazer sua coroa dourada;
Servindo de união entre as duas amizades –
E muitos outros já-ques da maior importância –
Para que, visto e conhecido o conteúdo da carta,
Sem qualquer outra deliberação, grande ou pequena,
Seja dada morte aos portadores,
Não se lhes concedendo nem tempo para a confissão.
HORÁCIO: E como selou o escrito?
HAMLET: Ah, até nisso o céu me
foi propício.
Eu tinha na bolsa o sinete de meu pai;
Cópia fiel do selo da Dinamarca;
Dobrei a folha como estava a outra;
Assinei-a, timbrei-a; coloquei-a no lugar da verdadeira,
Como as fadas trocam uma criança. No dia seguinte,
Aconteceu a abordagem – tudo o que vem depois
Já é de teu conhecimento.
(Ato 5 – Cena II)
(SHAKEPEARE, 1998, p.104,105)
Hamlet usa o termo
“velhacaria” – “villanies no original” para descrever seu sentimento de estar
aprisionado por uma teia de falcatruas protagonizadas pelo rei da Dinamarca, da
qual só poderá sair vivo caso permaneça vigilante e sob o amparo da loucura planejar
suas ações o que o faz ter a impressão de estar sempre no controle, e de certa
forma Hamlet se gaba de ter uma ciência quase total de toda a trama que o
envolve, note-se nas seguintes falas: “antes que eu pudesse enviar um prólogo
ao meu cérebro. Este já tinha iniciado o drama” Hamlet intenta dizer que sua
velocidade de raciocínio ultrapassa as concepções normais e sua capacidade de antever
a verdade é quase instantânea. Como visto há pouco, Hamlet construiu um
arcabouço hábil com sua retórica o que o levou a entender que está no controle
das situações que ele próprio cria, no entanto, como veremos a seguir, a cada passo
ardiloso que ele arquiteta, mais sua sensação de controle parece se desmoronar.
Oh,
tríplice desgraça
Caia dez
vezes triplicada sobre a cabeça maldita
Cuja ação criminosa
privou você
De tua
inteligência luminosa! Parem um momento a terra
Para que eu
a aperte uma última vez em meus braços.
(Ato 5- Cena I)
(SHAKESPEARE, 1998, p.102)
Ofélia - Joahn Everett |
Hamlet a partir de
então notou que seus atos dissimulados estavam sucessivamente gerando um rastro
de mortes as quais fugiram do seu presumido controle. Em uma leitura mais contemporânea
talvez começássemos a questionar se Hamlet realmente finge sua loucura ou se está
dominado por ela ao ponto de ter se tornado um sociopata frio e calculista.
Perguntas nos comentários:
Bye!
André Stanley é escritor e professor de História, Inglês e Espanhol, autor do livro "O Cadáver", editor dos blogs: (Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher). Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.
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