Como água para chocolate,
romance publicado em 1989 pela autora mexicana Laura Esquivel tem um caráter
muito peculiar de usar uma narrativa de vanguarda para relatar a história de
uma família tradicional do México no início do século XX. A obra tem o formato
de um livro de receitas de família que teria sido escrito por uma das filhas de
Mamá Elena, a matriarca da Família De Garza. O narrador é uma descendente dessa
família que relata os acontecimentos pela ótica da escritora do livro de
receitas, no caso, a filha caçula e protagonista do romance, Tita.
O livro foi um sucesso
mundial quando foi lançado e alguns anos depois – em 1992 – foi levado ao cinema pelo diretor
Alfonso Arau, que na ocasião era marido da escritora. O projeto contou com os
roteiros da própria autora e, portanto, é um dos raros casos onde a ótica do
autor está em sintonia com a tradução da obra literária para a linguagem
cinematográfica. O objeto de análise
desse artigo, se baseou além da obra escrita, também pela tradução
cinematográfica dá obra. O importante para nossa análise é usar a narrativa
para elucidar elementos externos às duas obras. Não é objetivo desse texto analisar a forma, nem mesmo os aspectos vanguardistas contidos na obra de
Esquivel, mas sim estabelecer uma sintonia desta com aspectos históricos e
sociais que o livro descreve.
O romance, dentre outros
fatores, narra a história da dominação de um povo pelas suas tradições, e
podemos notar aqui um aspecto universal de grande valia tanto para a crítica
literária quanto para os estudos sociais. Tita já havia nascido com a sina de
não poder se casar ou ter filhos, pois um costume familiar dizia que a filha
mais nova deve ser a responsável por cuidar de sua progenitora até que essa
venha a falecer. Notemos aqui que esse é um aspecto corriqueiro em todas as
sociedades existentes. Todas as sociedades da era moderna têm a necessidade de
exaltar as peculiaridades da sua cultura para criar sua identidade. Essa
identidade será o aspecto que a diferenciará das outras. Há aqui a
concretização da história desse sistema de crenças que servirá de apoio para as
gerações seguintes.
Nosso objetivo é traçar
dentro da obra de Esquivel aspectos que trazem à tona essa concretização da
crença tornando-a um sistema de valores que serão compartilhados pelos descendentes
dessa dada sociedade. Não somente pinçar do texto esses aspectos, como também, problematizá-los através de teorias que visam entender e solucionar os
conflitos decorrentes do choque das gerações. Pois todos os membros das novas
gerações receberão esse sistema de crenças já prontos e geralmente de forma
passiva sem contestar a razão pela qual as praticam. A escolha desse tema dentro
da obra “Como água para chocolate” é fruto de reflexões causadas após a leitura
do romance que dentre todos os temas abordados parece ser a questão do choque
entre as gerações o mais evidente.
Laura Esquivel, de alguma
forma, expõe ao leitor à força e vitalidade das tradições que ela própria como
mexicana, pode ter vivenciado. Portanto a obra que propomos analisar aqui está
repleta de crenças populares e metáforas que nos permite identificar a força
motriz e até mesmo destruidora que por séculos permanece como elemento
fundamental da criação de uma identidade social.
O
Conceito de tradição
Em “A Invenção da
tradição” o historiador Eric Hobsbawn diz que o estudo das tradições é uma questão
interdisciplinar. Segundo ele o termo tradição pode ser uma contribuição
historiográfica que merece ser estudada por outras ciências sociais e humanas.
Partindo dessa premissa do historiador britânico achamos pertinente empregar em
nossa analise literária esse conceito.
Segundo o “dicionário de
conceitos históricos” em sua definição mais simples, “tradição é um produto do
passado que continua a ser aceito e atuante no presente. É um conjunto de
práticas e valores enraizado nos costumes de uma sociedade”. Ou seja, em uma
sociedade onde já se estabeleceu historicamente que as mulheres permaneçam na
cozinha ou cuidando de seus filhos enquanto os homens saem a fazer suas
revoluções, isso é tido como algo natural e inquestionável. Os questionamentos
sobre o porquê isso deve ser assim vão parecer anacrônicos e infrutífero quando
o inconsciente coletivo dessa comunidade já concretizou essa tradição.
No romance “Como água
para chocolate” a protagonista Tita que já nascera carregando o fardo de nunca
poder se casar por ser ela a filha mais nova da família e segundo o costume
secular de sua família caberia a ela a tarefa de cuidar de sua mãe até que ela
morra, questiona seu fado já no primeiro capítulo do livro. Nos dizeres da narradora:
Si Tita no podía casarse ni tener hijos, ¿quién la
cuidaría entonces al llegar a la senectud? ¿Cuál era la solución acertada en
estos casos? ¿O es que no se esperaba que las hijas que se quedaban a cuidar a
sus madres sobrevivieran mucho tiempo después del fallecimiento de sus
progenitoras? ¿Y dónde se quedaban las mujeres que se casaban y no podían tener
hijos, quién se encargaría de atenderlas? Es más, quería saber, ¿cuáles fueron
las investigaciones que se llevaron a cabo para concluir que la hija menor era
la más indicada para velar por su madre y no la hija mayor? ¿Se había tomado
alguna vez en cuenta la opinión de las hijas afectadas? ¿Le estaba permitido al
menos, si es que no se podía casar, conocer el amor? ¿O ni siquiera
eso? (ESQUIVEL, p.8)
Nesse relato que pode
parecer um tanto inverossímil dentro da nossa análise a autora parece usar sua
personagem para argumentar sobre a utilidade de um costume que parece distante
da realidade contemporânea a que se passa a história. Tita se torna, portanto,
a portadora da faceta anti-tradicional da família De Garza. Seus
questionamentos vão de encontro à conduta extremamente tradicional empregada
pela matriarca Mamá Elena que não aceita esses questionamentos, “ainda mais
vindo de uma de suas filhas”.
Notamos aqui, que a autora do romance, estabelece uma
dicotomia que será evidente em toda a obra. Ela procura assim permitir ao
leitor, analisar os fundamentos das tradições familiares aos quais somos
submetidos antes mesmo de nascermos.
Segundo o conceito de
dominação e poder proposto pelo sociólogo Max Weber, podemos identificar na personagem Mamá Elena uma
representante da dominação por meio da legitimação de seu poder através da
tradição. Aliás, poder e dominação são conceitos distintos segundo a análise
weberiana. Poder, para Weber, é a capacidade de induzir ou influenciar o
comportamento de outra pessoa, por meio de coerção, manipulação ou de outras
formas estabelecidas, já a dominação é o direito adquirido de se fazer
obedecido e influenciar um dado grupo de pessoas. Essa autoridade de dominação
é adquirida e mantida por meio dos costumes e tradições aceitas por todos os
membros desse grupo. Portanto a mãe de Tita tinha autoridade sobre suas filhas,
no entanto, como veremos adiante não fora capaz de exercer seu poder sobre
todas as filhas. Nesse sentido podemos encerrar o conceito de tradição, ainda
sob a ótica do sociólogo alemão, como um dos elementos de dominação mais
eficientes em uma sociedade.
Três filhas, três maneiras de encarar a tradição
familiar.
O romance de Laura
Esquivel desde seu lançamento vem sendo fonte de discussões nos meios
literários. Por abordar todos os acontecimentos narrados sempre pela ótica de
uma mulher, movimentos ligados ao feminismo e outros nichos sociais se
apropriam da narrativa para criar argumentos cheios de aspectos ideológicos.
Não é o caso desse trabalho que procura analisar o romance sob o viés da
tradição, mas eventualmente e inevitavelmente cairemos nas mesmas discussões já
elencadas por essas análises. O universo feminino parece ser o fio condutor da
obra. Vamos analisar agora como as quatro personagens femininas que dão o tom
do romance se comportam diante da tradição familiar.
Mamá Elena é uma mulher dura que representa a manutenção dos aspectos
tradicionais familiares. Ela é a legitima detentora do papel de autoridade da
casa. Todas as decisões devem passar pelo seu jugo. A vontade própria das três
filhas nunca é respeitada. Rosaura, a filha mais velha, é a que se aproxima
mais da mãe em termos de respeito as tradições familiares. Apesar de estar sob
o jugo da autoridade da mãe, ela sempre se mostra passiva e nunca a vemos
questionar a autoridade de Mamá Elena. Sua passividade dá a ela um aspecto
apático e conservador. É a única que tem planos explícitos de se casar e ter
filhos propagando a continuidade da família. Fato que se consolida quando essa
é oferecida em matrimonio a Pedro, que aceitou se casar com Rosaura com o único
intuito de ficar próximo de sua paixão, a imã caçula de Rosaura, Tita, que como
sabemos não podia se casar.
Gertrudis é a filha do meio, uma jovem que até sua pós-adolescência
conseguiu manter seus desejos mais íntimos reprimidos sob a influência autoritária da
mãe. No entanto, foi a primeira das filhas a romper os laços tradicionais de
sua família. Quando em um acesso de pura entrega aos seus instintos mais
legítimos – por que não dizer suas necessidades humanas mais íntimas – fugiu
com um revolucionário para ter a partir de então uma vida errante em locais
impensáveis para a mentalidade extremamente conservadora de sua mãe. Gertudis
representa a quebra brusca com a tradição familiar. Encontra uma saída para se
ver livre das amarras da autoridade de sua mãe e faz isso de forma extrema. Sua
conduta pode ser descrita como libertária para os partidários dos direitos da
mulher e como promiscua para os mais conservadores. Mais uma vez cabe ao leitor
julgar sua atitude baseado em seu próprio histórico pessoal.
Tita é a personagem principal do romance, pois é ela que escreve o livro
de receitas que conduz o romance. Sua relação com as tradições familiares
sempre foi de desconfiança e de incompreensão. Afinal, como já vimos, ela é
diretamente afetada pelo costume familiar de não poder se casar por ser a mais
jovem das filhas. Tita questiona a legitimidade da tradição e em várias
oportunidades contesta diretamente a autoridade da mãe. No entanto, sua conduta
até certo ponto da obra permanece incorruptível. Submete-se ao jugo materno até
quando pode. Tita encontra uma forma que de canalizar seus desejos mais íntimos
para a culinária. É ela a responsável pela mesa. Sua vida praticamente se
resume ao ambiente culinário, já que não pode almejar explorar suas vontades
íntimas. Dessa forma suas aspirações e desejos são materializados em suas
receitas. As pessoas que desfrutam de seus pratos acabam por sentir seus
anseios e vontades, não porque ela magicamente manipula seus ingredientes como
uma bruxa a fazer uma poção, mas porque essas são as vontades humanas mais
intrínsecas e universais.
Tita, mesmo em um ambiente tradicionalmente legado as mulheres passivas e
sem anseios, consegue mostrar que os desejos pessoais e sobretudo carnais são
aprisionados pelos aspectos tradicionais. A filha mais nova de Mamá Elena se
torna então o fator de questionamentos sobre o quanto é legítimo dar ou não
vazão a essas tentações do íntimo.
Nos atemos ao conceito de tradição
que parece ser recorrente na narrativa. Sabemos que não há como esgotar todos
os elementos sobre esse tema em tão pouco espaço, por isso foi nossa intenção
fazer uma análise superficial no intuito de aprofundar esse estudo em outra
oportunidade.
No entanto, como conclusão desse texto podemos elencar que o livro de
Laura Esquivel pode ser fonte de estudos sobre a permanência da tradição nas
sociedades modernas. Sabemos que são sistemas de crenças construídos
historicamente para dar sentido à vida. Não podemos construir uma sociedade do
zero, sempre vamos nos apoiar no passado para construir nossa mentalidade. No
entanto, as vontades inerentes ao ser humano sempre irão contradizer essas
crenças conforme as sociedades se desenvolvem e, uma sociedade desenvolvida,
tanto tecnologicamente quanto moralmente só chega a um patamar eficiente de
conduta quando está disposta a rever seus conceitos e adaptá-los às novas
necessidades que surgem no decorrer do processo histórico. A grande
contribuição dessa obra literária aos estudos sobre a tradição é a sua
utilidade não somente como uma metáfora da vida cotidiana, mas também como um
gerador de questionamentos sobre o porquê de ainda permanecermos aprisionados à
princípios que nem mesmo paramos para perguntar sua razão de existirem.
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Laura Esquivel |
Bibliografia:
- · Como agua para chocolate (filme). Alfonso Arau, 1992. 2.30min.color.
- · Como Água para chocolate: A recipe for neoliberalism. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/29741842?seq=1#page_scan_tab_contents. Acesso em 20 de junho de 2016
- · Análisis de “Como Agua para Chocolate”- Monografia.com Disponível em: http://www.monografias.com/trabajos62/analisis-como-agua-para-chocolate/analisis-como-agua-para-chocolate2.shtml Acesso em 20 de junho de 2016
- · Dicionário de Conceitos Históricos - Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva – Ed. Contexto – São Paulo; 2006
- · ESQUIVEL, Laura. Como água para chocolate. Debolsillo. 2011
- · História: Resenha de "Introdução" - de "A invenção das tradições" - Eric Hobsbawm. Disponível em: http://historia-resenhas.blogspot.com.br/2010/09/resenha-de-introducao-de-invencao-das.html Acesso em: 21 de junho de 2016
- · LUVIZOTTO, Caroline K. A (re)invenção da tradição no contexto da modernidade tardia. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
- · Max Weber e os três tipos puros de dominação legítima. Disponível em:http://www.administradores.com.br/artigos/economia-e-financas/max-weber-e-os-tres-tipos-puros-de-dominacao-legitima/43721/ Acesso em: 21 de junho de 2016
- · SERRÃO, Raquel A. Sabor, Emoção e Tradução em COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE, – UEPB CENTRO DE EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE LETRAS MESTRADO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE. Paraíba 2010.
- André Stanley é escritor e professor de História, Inglês e Espanhol, autor do livro "O Cadáver", editor dos blogs: (Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher). Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.
Tô muitíssimo agradecido por você ter feito esse trabalho. Esse romance é incrivelmente fantástico, uma obra prima... Pouquíssimos trabalhos sobre ele, daí quero alguém que me fale da leitura e não tô achando, o blog aqui veio a calhar.
ResponderExcluirE que agradeço por ter lido esse artigo Leandro. Seja bem vindo e fique a vontade, para refletir.
ResponderExcluirboa noite, um ótimo artigo
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