A literatura produzida no
século XX, no Brasil, foi marcada inicialmente por uma ruptura com as correntes
literárias que vinham dominando havia tempos a produção literária brasileira. Se, por um lado, buscou-se romper com o idealismo exacerbado dos escritores
românticos e mostrar um Brasil mais realista, dando vazão a temas sociais e
políticos, por outro lado, a introdução de novas ideologias vindas do exterior
determinou o rumo das produções de grande parte das obras desse período. O
movimento modernista que tem como início simbólico a Semana de Arte Moderna de 1922, buscou quebrar bruscamente com todos os clichês formais dos movimentos
anteriores. A iniciativa de se buscar uma nova orientação para a arte no Brasil
e especialmente para a literatura se tornou um momento significativo para a produção
literária brasileira.
Muitos autores
importantes, que de certa forma deram o tom da produção literária brasileira
posterior, escreveram a serviço de suas convicções políticas, produzindo
verdadeiras cartilhas ideológicas sob a alcunha de literatura. Não é difícil
identificar essa tendência. Com uma rápida análise podemos pinçar como
exemplos, o ultranacionalista Policarpo Quaresma criado por Lima Barreto –
ainda antes do surgimento do modernismo – Zé Candinho personagem de “O
Estrangeiro” de Plínio Salgado, os heróis proletários da primeira fase de Jorge
Amado, somente para citar alguns. Esses autores, divergentes em suas crenças,
se assemelhavam na sua forma ideológica de fazer literatura. Esse tipo de
literatura abertamente comprometida com visões de mundo idealizadas, logo
produziram clássicos que até hoje em dia são referências e fontes de estudo
para vestibulares e provas afins para acesso às universidades.
Proponho fazermos aqui algumas
reflexões. As análises dessas obras levam em conta os aspectos ideológicos que
elas propagam? Quais são os critérios utilizados para inserir tais autores no
panteão da literatura brasileira? Por que são escassas as contestações
qualitativas feitas a esses autores?
Panfleto político anunciando a candidatura de Jorge Amado a deputado Federal, pelo PCB em 1945 |
Sem negar a importância
histórica dessas obras e até mesmo dos autores que as escreveram, seria
pertinente para entender o verdadeiro papel da literatura, analisar a qualidade
literária contida nessas obras. Para saber se uma obra pode ser considerada boa
literatura, devemos esboçar aqui algumas diretrizes que nos ajudem a entender ao
que se propõe a literatura. Primeiramente devemos questionar sempre o que um
autor pretende com sua obra. Se encontramos nela uma visão de mundo fechada,
sem dar ao leitor qualquer chance de fazer questionamentos sobre sua própria
vivencia, é o primeiro resquício de uma possível doutrinação ideológica. Como
ocorre sutilmente em “Mar Morto” de Jorge Amado – em outras obras desse
período, o escritor é mais abertamente um militante comunista. Nesse romance, o autor não oferece ao leitor nenhuma forma, na própria obra, de
contrapor a sociedade totalmente utópica criada como forma mais sublime de
relações humana. O leitor recebe pronta a ideia de uma sociedade cativante
formada por habitantes do cais da Bahia, sem a intervenção da classe média, como
se ela não pudesse intervir naquela sociedade harmônica.
Outro aspecto importante
a se considerar é a ambição do autor, que muitas vezes ingenuamente acha que com
a literatura ele pode concretizar uma mudança estrutural ao seu redor. Geralmente
embasado por questões políticas. Não é papel da literatura salvar o mundo, no
máximo o que ela faz é apresentar versões desse mundo. A obra literária por
assim dizer, não tem qualquer compromisso com a construção de um sistema social
ideal, mas sim fazer releituras dos sistemas já existentes.
Portanto, toda obra que
apresenta uma visão de mundo ou tenha um objetivo político, se aproxima mais da
doutrinação e se afasta da literatura como produção artística. Como declarou
Gao Xingjian, prêmio Nobel de literatura de 2000, “a literatura não faz da
crítica social sua missão, e não usa uma visão de mundo pré-fabricada nem um
sistema de valores nela alicerçada para julgar a sociedade”. Para ele “os
depoimentos da literatura se valem da estética. A estética emana primeiramente
da natureza humana, estando intimamente associada à incorporação das
influências culturais que se deu no decorrer de um extenso período da história
humana”.
Portanto, a primeira
coisa a que uma obra literária de qualidade nos faz atentar é para a sua forma
estética, esse sim pode ser estabelecido como um juízo de valor que está acima
de qualquer utilidade prática da literatura. Ainda que esse pressuposto possa
parecer apenas uma intervenção técnica da crítica literária ou uma tentativa de
estabelecimento de uma diretriz teórica para a análise de um texto, ele captura
– segundo o crítico italiano Alfonso Berardinelli, “um aspecto da realidade
literária e exprime uma vontade legítima: que nem toda nossa imaginação e que
nem todos os nossos pensamentos possuam ou tenham que possuir uma relação com a
realidade social presente, muito menos com as opiniões políticas, e menos ainda
com as disputas políticas momentâneas”.
Notamos aqui que, para
considerarmos uma obra como digna de ser chamada de literatura, ela não deve
ter ambições que não estejam no campo da estética, e que um bom autor é talvez
aquele que não deixa suas convicções políticas transparecerem em sua arte. O
papel do crítico literário é, portanto, avaliar esses preceitos. “Se não
avaliarmos as obras com base em critérios estéticos, seremos militantes de
determinadas causas, mas não críticos literários”, assim declara LeylaPerrone-Moisés.
Fontes:
- AMADO, Jorge. Mar Morto. Rio de Janeiro: Record, 2006.
- BERARDINELLI, Alfonso. Biblioteca Antagonista – A Direita e a esquerda na literatura. Disponível em: http://ayine.com.br/catalogue/direita-e-esquerda-na-literatura_26/. Acesso em: 22 de Junho de 2016.
- CHAUI, Marilena. O que é Ideologia 30ª ed. São Paulo: Brasiliense,1989.
- SILVA, Humberto Pereira da. Revista Trópico – A literatura contra a ideologia. Disponível em: http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2941,1.shl. Acesso em 27 de junho de 2016.
- XINGJIAN, Gao. O Estado de São Paulo – Ideologia e Literatura. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,ideologia-e-literatura-imp-,754863. Acesso em: 22 de junho de 2016.
- André Stanley é escritor e professor de História, Inglês e Espanhol, autor do livro "O Cadáver", editor dos blogs: (Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher). Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.
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