Gênero: Documentário
Direção: João Jardim, Walter Carvalho
Roteiro: João Jardim, Walter Carvalho
Elenco: Arnaldo Godoy, Evgen Bavcar,
Hermeto Paschoal, José Saramago,
Marieta Severo, Oliver Sacks, Wim Wenders
Produção: Flávio R. Tambellini
Fotografia: Walter Carvalho
Trilha Sonora: José Miguel Wisnik
Duração: 73 min.
Ano: 2001
País: Brasil
Cor: Colorido
Estúdio: Ravina Filmes
Informação complementar: Depoimentos de
Evgen Bavcar, Arnaldo Godoy, HermetoPaschoal,
Oliver Sacks, José Saramago,
Marieta
Severo, Wim Wenders.
Esse documentário dirigido pelos brasileiros João Jardim e
Walter Carvalho, foi lançado em 2001 e procura mostrar as dificuldades
recorrentes dos problemas visuais, que submete as pessoas a desenvolverem formas
criativas de superar essas adversidades. A obra conta com depoimentos de pessoas
comuns, e algumas célebres representantes do mundo das artes que sofrem, em
determinado grau, de algum problema de visão. Dentre essas personalidades,
encontram-se o escritor português José Saramago, o cineasta alemão Wim Wenders,
o músico brasileiro Hermeto Pascoal só para citar alguns desse seleto grupo de
autoridades em seus respectivos ofícios.
O filme não é mostrado de forma retilínea, um depoimento
após o outro. O estilo de edição utilizado aqui mostra as entrevistas de forma
fragmentada onde o contraste visual entre cada um dos entrevistados é nítido. Alguns
sendo entrevistados em um canto escuro de sua casa, outros na sala de estar e
outros nas ruas. O que mantém a unidade da obra é justamente o tema,
"falta de visão". Em uma das entrevistas, o vereador mineiro Arnaldo
Godoy guia a equipe de filmagens pelas ruas de Belo Horizonte usando referenciais
como subidas, descidas e sinais sonoros, pois Godoy perdeu a visão quando tinha
17 anos de idade. Habilidades como esta desenvolvida por Godoy, que é
totalmente cego, parece ser a tônica do filme. É justamente sobre esse poder
criador exigido por uma deficiência visual que os diretores fundamentaram sua
obra.
O esloveno Evgen Bavcar perdeu a visão ainda na juventude
por conta de dois acidentes. No entanto, seguiu uma carreira artística que
jamais poderia ser imaginada sendo praticada por um cego. Evgen se torna um
fotografo conhecido mundo afora, com exposições de sua obra sendo organizadas
em vários países. Esse paradoxo, cegos que atuam justamente naquilo onde a
imagem é soberana, parece ter sido outra diretriz seguida pelos autores desse
documentário. Essa mesma questão temática já foi explorada pelo neurocientista
britânico Oliver Sacks. Em seu livro Olhar
da Alma ele estuda os casos de um pianista que perdeu a capacidade de ler e
reconhecer partituras, um escritor que não consegue mais ler, dentre outros casos
da mesma complexidade. Não é coincidência que anos antes de lançar essa obra,
Sacks tenha sido também um dos entrevistados desse documentário. Pois também
sofre com problemas visuais desde que um melanoma no olho o fez sofrer uma
cirurgia, o que tornou sua visão embaçada.
Wim Wenders, um dos grandes cineastas da atualidade, diretor
dos clássicos oitentistas Paris Texas
e Asas do Desejo, diz que tentou usar
lentes quando tinha seus 30 anos de idade, mas dessa forma via demais. Descobriu
então que o fato de usar óculos o ajuda a limitar sua visão a quadros o que
facilita seu trabalho. Ele não queria ver demais. A atriz Marieta Severo – cuja
participação nesse filme parece no mínimo questionável – por outro lado, diz
que necessita do olhar do outro com o qual está contracenando, por isso quando
perde as lentes em um espetáculo, tem sua atuação completamente prejudicada.
Portanto não se trata de um documentário esclarecedor que pretenda encerrar o
tema, mas, sobretudo, uma amostra das diferentes experiências vividas por pessoas
influentes que tiveram que superar as adversidades da falta de visão.
Os depoimentos tratam também de fatores cotidianos, como os
sonhos eróticos de alguns dos entrevistados, a vaidade pelo fato de usar óculos,
a aceitação do problema e como uma adversidade que pode ser considerada uma catástrofe
se torna a salvação para quem consegue se expressar com seu eu interior.
Questionamentos que nos conduz a uma analogia com uma obra famosa de Machado de
Assis. Em O espelho, conto publicado
pela primeira vez em 1882, o personagem Jacobina se encontra dentro de um
conflito subjetivo entre sua "alma interior" e sua "alma
exterior". Jacobina que tinha uma carreira respeitável como alferes da
guarda nacional, em certo momento do conto só consegue acalentar sua “alma
interior” quando vestia sua farda e ficava olhando para o espelho em seu
quarto. Assim, Jacobina conseguia se ver da mesma forma como os outros o viam.
É assim que ele conseguia vencer a solidão.
Podemos dizer que Machado de Assis usa a analogia do
espelho para mostrar o quanto nossa "alma externa" domina nossa
"alma interna" sendo necessário que nos enganemos usando de
subterfúgios alegóricos como uma farda, para nos sentirmos nós mesmos. A
cineasta finlandesa radicada em Londres Marjut Rimminen diz que sua mãe sempre
a olhava com uma feição melancólica e deprimida, como se tivesse muita pena
dela por ter uma visão comprometida. Isso a afetou profundamente. Ela achava
que era um fracasso, porque sua mãe a olhava daquela maneira. Diz ela em seu
depoimento: “Eu estava decidida a não ser
um fracasso, a lutar, e a fazer o que pudesse, a escolher uma profissão na qual
eu escolhesse o que eu quero, e ninguém mais fizesse isso por mim” (Marjut
Rimminen). Ou seja, Rimminen diferentemente do Jacobina de Machado de Assis,
não se acomodou com a visão dos outros sobre si e procurou superar isso criando
seus filmes.
Essas pessoas, que o documentário, Janela da Alma nos
apresenta, como em uma conversa formal, têm esse espelho embaçado e por isso
sua "alma externa" foi em certo grau comprometida. Buscam então
dentro de si, dentro de sua subjetividade, a sua mais verdadeira expressão. Como
diz o poeta Manoel de Barros, um dos entrevistados no documentário. "Eu não acho que seja pelo olho que
entram as coisas minhas, elas não entram, elas vêm, elas aparecem de dentro, de
dentro de mim” (Manoel de Barros). Podemos considerar que, o que faz de uma
pessoa um grande artista não está no fato de ele ou ela enxergar o mundo externo
e infinito, mas sim no fato de conseguir entrar em contato com sua
subjetividade e dentro de seus limites, ser capaz de se expressar. O próprio
Manuel de Barros completa dizendo que é a imaginação que tem relevância para o
artista, ou seja, a arte está dentro do próprio artista, “a imaginação que traz ver, que transfigura o mundo, que faz outro
mundo” (Manoel de Barros). Oliver Sacks também arrisca uma reflexão sobre
isso:
Se dizemos que os olhos são a janela da alma…sugerimos, de certa
forma, que os olhos são passivos e que as coisas apenas entram. Mas a alma e a
imaginação também saem. O que vemos é constantemente modificado por nosso
conhecimento, nossos anseios, nossos desejos, nossas emoções, pela cultura, pelas
teorias científicas mais recentes…
Se alguma vez vimos raspas de ferro sobre um ímã e qual o
comportamento de um campo magnético acredito que isso entra no imaginário, de
certa maneira e posso ver os campos invisíveis do ímã. Posso vê-lo, sem o ver.
Posso vê-lo com os olhos da mente. (Oliver Sacks)
Parece que esse filme pretende deixar claro que a visão, da
mesma forma que no conto de Machado de Assis, nos condiciona a nos ver nos
olhos dos outros, nunca nos nossos próprios.
Quando vemos demais podemos estar perdendo a oportunidade
de ver o que é estritamente necessário. Sabemos o quanto é difícil para quem
não enxerga, viver em um mundo cheio de obstáculos. Mas ao vermos esse filme
descobriremos que talvez seja mais difícil para quem enxerga perfeitamente
conseguir ver o essencial. Como em uma dinâmica de grupo onde botamos uma venda
nos olhos para simular uma cegueira severa, e somos guiados por alguém para
tentar sentir na pele o que é perder a visão, esse filme nos faz refletir sobre
nossas capacidades inerentes, que de alguma forma permanecem em estado
cataléptico até que algo as desperte.
O filme muitas vezes parece ser uma colcha de retalhos nos
remetendo a obras totalmente abstratas do mesmo gênero. Esse aspecto é
reforçado pelas imagens hora bem focadas hora desfocadas, onde não podemos
distinguir nada do que aparece na tela, mas os diretores conseguem habilmente sempre
retomar ao tema central. Não se trata de um filme didático que defende uma
tese, como ocorre em Pro Dia Nascer Feliz,
outro documentário de João Jardim, mas sim de uma visão um tanto subjetiva de
seus próprios criadores. Tanto João Jardim quanto Walter Carvalho sofrem de
problemas de visão e tinham em mente justamente criar essa reflexão entre a
criação artística e disfunção visual.
Janela da Alma foi o documentário mais visto no ano de 2002
e venceu vários prêmios no Brasil e no exterior, dentre eles, o Grande Prêmio
Cinema Brasil de Melhor Documentário, o prêmio de Melhor Documentário no
Festival do Rio 2001 e também o prêmio de Melhor Filme no Festival de Cinema
Brasileiro de Paris. Um filme reflexivo, sem um compromisso estreito com o
entretenimento puro, apesar de ter passagens bem humoradas no decorrer dos
depoimentos. O filme possui uma linguagem coloquial, e em alguns momentos é
pura poesia. Em um filme sobre o falta do sentido da visão é necessário destacar
a importância da trilha sonora, que ficou a cargo de José Miguel Wisnik.
Melodias suaves ao piano emolduram o tom reflexivo da obra. Às vezes podendo
apelar para o puramente emocional.
A cena do parto no final do filme, que parece quebrar um
pouco a estrutura da obra, demonstra o sentimento de quem o assiste e entende
que apesar de dolorosa a cegueira pode ser o nascimento de uma nova
perspectiva, de um novo ser reflexivo. Afinal estamos de certa forma presos
pelos nossos olhos como diz Wim Wenders:
A atual superabundância de imagens significa basicamente que somos
incapazes de prestar atenção. Somos incapazes de nos emocionarmos com as
imagens. Atualmente, as histórias têm que ser extraordinárias para nos
comoverem. As histórias simples, não conseguimos mais vê-las. (Wim Wenders)
Quando
vemos o olhar da mãe para seu filho que acaba de vir ao mundo e conseguimos
notar a emoção em seus olhos compreendemos que perdemos muitas oportunidades de
nos emocionarmos com o simples.
Fontes:
· ADORO CINEMA, Janela da Alma. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-50435/. Acesso em 17 de Jun. 2015
· ADORO CINEMA, Wim Wenders. Disponível em: http://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-37/filmografia/. Acesso em: 17 de Jun. 2015
· ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II.
· CAMELO, Tiago, Entender e responder. Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/resenhas/entender-e-responder. Acesso em: 16 de Jun. 2015.
· JANELA da Alma. Direção: João Jardim e Walter Carvalho. Brasil: Produção: Flávio R. Tambellini, 2001. 73 min. Colorido.
· LA SALLE NOIR, Análise de “Janela da Alma”. Disponível em: http://www.virose.pt/blog/noir/?p=282. Acesso em 18 de Jun. 2015.
· MATTOS, Francine, Evgen Bavcar, o fotógrafo do (in)visível. Disponível em: http://fotografeumaideia.com.br/site/fotografos/inspiracoes/352-evgen-bavcar-o-fotografo-do-in-visivel. Acesso em; 17 de Jun 2015.
· WIKIPEDIA, Janela da Alma, disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Janela_da_Alma. Acesso em: 17 de Jun.20015
· WIKIPEDIA, João Jardim. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Jardim. Acesso em 18 de Jun.2015.
· WIKIPEDIA, José Miguel Wisnik. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Miguel_Wisnik. Acesso em: 18 de Jun. 2015.
André Stanley alcunha de André Luiz Ribeiro é professor e escritor; autor do livro “O Cadáver” (Editora Multifoco – 2013); É membro efetivo da Asso. Dos Historiadores e pesquisadores dos Sertões do Jacuhy desde 2004. Atua hoje como professor e pesquisador de História Cultural. Também leciona língua inglesa, idioma que domina desde a adolescência, Administra e escreve para os blogs: Blog do André Stanley (blogdoandrestanley.blogspot.com) – Sobre História, política, arte, religião, humor e assuntos diversos e Stanley Personal Teacher (stanleypersonalteacher.blogspot.com) onde da dicas de Inglês e posta exercícios para todos os níveis.
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