domingo, 28 de junho de 2015

(Documentário) A Janela da Alma – Uma reflexão sobre a arte de não enxergar.






Ficha técnica:

Gênero: Documentário
Direção: João Jardim, Walter Carvalho
Roteiro: João Jardim, Walter Carvalho
Elenco: Arnaldo Godoy, Evgen Bavcar,
Hermeto Paschoal, José Saramago,
Marieta Severo, Oliver Sacks, Wim Wenders
Produção: Flávio R. Tambellini
Fotografia: Walter Carvalho
Trilha Sonora: José Miguel Wisnik
Duração: 73 min.
Ano: 2001
País: Brasil
Cor: Colorido
Estúdio: Ravina Filmes
Informação complementar: Depoimentos de
Evgen Bavcar, Arnaldo Godoy, HermetoPaschoal,
Oliver Sacks, José Saramago, 
Marieta Severo, Wim Wenders.


Esse documentário dirigido pelos brasileiros João Jardim e Walter Carvalho, foi lançado em 2001 e procura mostrar as dificuldades recorrentes dos problemas visuais, que submete as pessoas a desenvolverem formas criativas de superar essas adversidades. A obra conta com depoimentos de pessoas comuns, e algumas célebres representantes do mundo das artes que sofrem, em determinado grau, de algum problema de visão. Dentre essas personalidades, encontram-se o escritor português José Saramago, o cineasta alemão Wim Wenders, o músico brasileiro Hermeto Pascoal só para citar alguns desse seleto grupo de autoridades em seus respectivos ofícios.
O filme não é mostrado de forma retilínea, um depoimento após o outro. O estilo de edição utilizado aqui mostra as entrevistas de forma fragmentada onde o contraste visual entre cada um dos entrevistados é nítido. Alguns sendo entrevistados em um canto escuro de sua casa, outros na sala de estar e outros nas ruas. O que mantém a unidade da obra é justamente o tema, "falta de visão". Em uma das entrevistas, o vereador mineiro Arnaldo Godoy guia a equipe de filmagens pelas ruas de Belo Horizonte usando referenciais como subidas, descidas e sinais sonoros, pois Godoy perdeu a visão quando tinha 17 anos de idade. Habilidades como esta desenvolvida por Godoy, que é totalmente cego, parece ser a tônica do filme. É justamente sobre esse poder criador exigido por uma deficiência visual que os diretores fundamentaram sua obra.
O esloveno Evgen Bavcar perdeu a visão ainda na juventude por conta de dois acidentes. No entanto, seguiu uma carreira artística que jamais poderia ser imaginada sendo praticada por um cego. Evgen se torna um fotografo conhecido mundo afora, com exposições de sua obra sendo organizadas em vários países. Esse paradoxo, cegos que atuam justamente naquilo onde a imagem é soberana, parece ter sido outra diretriz seguida pelos autores desse documentário. Essa mesma questão temática já foi explorada pelo neurocientista britânico Oliver Sacks. Em seu livro Olhar da Alma ele estuda os casos de um pianista que perdeu a capacidade de ler e reconhecer partituras, um escritor que não consegue mais ler, dentre outros casos da mesma complexidade. Não é coincidência que anos antes de lançar essa obra, Sacks tenha sido também um dos entrevistados desse documentário. Pois também sofre com problemas visuais desde que um melanoma no olho o fez sofrer uma cirurgia, o que tornou sua visão embaçada.
 Wim Wenders, um dos grandes cineastas da atualidade, diretor dos clássicos oitentistas Paris Texas e Asas do Desejo, diz que tentou usar lentes quando tinha seus 30 anos de idade, mas dessa forma via demais. Descobriu então que o fato de usar óculos o ajuda a limitar sua visão a quadros o que facilita seu trabalho. Ele não queria ver demais. A atriz Marieta Severo – cuja participação nesse filme parece no mínimo questionável – por outro lado, diz que necessita do olhar do outro com o qual está contracenando, por isso quando perde as lentes em um espetáculo, tem sua atuação completamente prejudicada. Portanto não se trata de um documentário esclarecedor que pretenda encerrar o tema, mas, sobretudo, uma amostra das diferentes experiências vividas por pessoas influentes que tiveram que superar as adversidades da falta de visão.
Os depoimentos tratam também de fatores cotidianos, como os sonhos eróticos de alguns dos entrevistados, a vaidade pelo fato de usar óculos, a aceitação do problema e como uma adversidade que pode ser considerada uma catástrofe se torna a salvação para quem consegue se expressar com seu eu interior. Questionamentos que nos conduz a uma analogia com uma obra famosa de Machado de Assis. Em O espelho, conto publicado pela primeira vez em 1882, o personagem Jacobina se encontra dentro de um conflito subjetivo entre sua "alma interior" e sua "alma exterior". Jacobina que tinha uma carreira respeitável como alferes da guarda nacional, em certo momento do conto só consegue acalentar sua “alma interior” quando vestia sua farda e ficava olhando para o espelho em seu quarto. Assim, Jacobina conseguia se ver da mesma forma como os outros o viam. É assim que ele conseguia vencer a solidão.
Podemos dizer que Machado de Assis usa a analogia do espelho para mostrar o quanto nossa "alma externa" domina nossa "alma interna" sendo necessário que nos enganemos usando de subterfúgios alegóricos como uma farda, para nos sentirmos nós mesmos. A cineasta finlandesa radicada em Londres Marjut Rimminen diz que sua mãe sempre a olhava com uma feição melancólica e deprimida, como se tivesse muita pena dela por ter uma visão comprometida. Isso a afetou profundamente. Ela achava que era um fracasso, porque sua mãe a olhava daquela maneira. Diz ela em seu depoimento: “Eu estava decidida a não ser um fracasso, a lutar, e a fazer o que pudesse, a escolher uma profissão na qual eu escolhesse o que eu quero, e ninguém mais fizesse isso por mim” (Marjut Rimminen). Ou seja, Rimminen diferentemente do Jacobina de Machado de Assis, não se acomodou com a visão dos outros sobre si e procurou superar isso criando seus filmes.
Essas pessoas, que o documentário, Janela da Alma nos apresenta, como em uma conversa formal, têm esse espelho embaçado e por isso sua "alma externa" foi em certo grau comprometida.  Buscam então dentro de si, dentro de sua subjetividade, a sua mais verdadeira expressão. Como diz o poeta Manoel de Barros, um dos entrevistados no documentário. "Eu não acho que seja pelo olho que entram as coisas minhas, elas não entram, elas vêm, elas aparecem de dentro, de dentro de mim” (Manoel de Barros). Podemos considerar que, o que faz de uma pessoa um grande artista não está no fato de ele ou ela enxergar o mundo externo e infinito, mas sim no fato de conseguir entrar em contato com sua subjetividade e dentro de seus limites, ser capaz de se expressar. O próprio Manuel de Barros completa dizendo que é a imaginação que tem relevância para o artista, ou seja, a arte está dentro do próprio artista, “a imaginação que traz ver, que transfigura o mundo, que faz outro mundo” (Manoel de Barros). Oliver Sacks também arrisca uma reflexão sobre isso:

Se dizemos que os olhos são a janela da alma…sugerimos, de certa forma, que os olhos são passivos e que as coisas apenas entram. Mas a alma e a imaginação também saem. O que vemos é constantemente modificado por nosso conhecimento, nossos anseios, nossos desejos, nossas emoções, pela cultura, pelas teorias científicas mais recentes…
Se alguma vez vimos raspas de ferro sobre um ímã e qual o comportamento de um campo magnético acredito que isso entra no imaginário, de certa maneira e posso ver os campos invisíveis do ímã. Posso vê-lo, sem o ver. Posso vê-lo com os olhos da mente. (Oliver Sacks)


Parece que esse filme pretende deixar claro que a visão, da mesma forma que no conto de Machado de Assis, nos condiciona a nos ver nos olhos dos outros, nunca nos nossos próprios.
Quando vemos demais podemos estar perdendo a oportunidade de ver o que é estritamente necessário. Sabemos o quanto é difícil para quem não enxerga, viver em um mundo cheio de obstáculos. Mas ao vermos esse filme descobriremos que talvez seja mais difícil para quem enxerga perfeitamente conseguir ver o essencial. Como em uma dinâmica de grupo onde botamos uma venda nos olhos para simular uma cegueira severa, e somos guiados por alguém para tentar sentir na pele o que é perder a visão, esse filme nos faz refletir sobre nossas capacidades inerentes, que de alguma forma permanecem em estado cataléptico até que algo as desperte.
O filme muitas vezes parece ser uma colcha de retalhos nos remetendo a obras totalmente abstratas do mesmo gênero. Esse aspecto é reforçado pelas imagens hora bem focadas hora desfocadas, onde não podemos distinguir nada do que aparece na tela, mas os diretores conseguem habilmente sempre retomar ao tema central. Não se trata de um filme didático que defende uma tese, como ocorre em Pro Dia Nascer Feliz, outro documentário de João Jardim, mas sim de uma visão um tanto subjetiva de seus próprios criadores. Tanto João Jardim quanto Walter Carvalho sofrem de problemas de visão e tinham em mente justamente criar essa reflexão entre a criação artística e disfunção visual.
Janela da Alma foi o documentário mais visto no ano de 2002 e venceu vários prêmios no Brasil e no exterior, dentre eles, o Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Documentário, o prêmio de Melhor Documentário no Festival do Rio 2001 e também o prêmio de Melhor Filme no Festival de Cinema Brasileiro de Paris. Um filme reflexivo, sem um compromisso estreito com o entretenimento puro, apesar de ter passagens bem humoradas no decorrer dos depoimentos. O filme possui uma linguagem coloquial, e em alguns momentos é pura poesia. Em um filme sobre o falta do sentido da visão é necessário destacar a importância da trilha sonora, que ficou a cargo de José Miguel Wisnik. Melodias suaves ao piano emolduram o tom reflexivo da obra. Às vezes podendo apelar para o puramente emocional.
A cena do parto no final do filme, que parece quebrar um pouco a estrutura da obra, demonstra o sentimento de quem o assiste e entende que apesar de dolorosa a cegueira pode ser o nascimento de uma nova perspectiva, de um novo ser reflexivo. Afinal estamos de certa forma presos pelos nossos olhos como diz Wim Wenders:

A atual superabundância de imagens significa basicamente que somos incapazes de prestar atenção. Somos incapazes de nos emocionarmos com as imagens. Atualmente, as histórias têm que ser extraordinárias para nos comoverem. As histórias simples, não conseguimos mais vê-las. (Wim Wenders)


Quando vemos o olhar da mãe para seu filho que acaba de vir ao mundo e conseguimos notar a emoção em seus olhos compreendemos que perdemos muitas oportunidades de nos emocionarmos com o simples.







Fontes:


· ADORO CINEMA, Janela da Alma. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-50435/. Acesso em 17 de Jun. 2015
· ADORO CINEMA, Wim Wenders. Disponível em: http://www.adorocinema.com/personalidades/personalidade-37/filmografia/. Acesso em: 17 de Jun. 2015
· ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II.
· CAMELO, Tiago, Entender e responder. Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/resenhas/entender-e-responder. Acesso em: 16 de Jun. 2015.
· JANELA da Alma. Direção: João Jardim e Walter Carvalho. Brasil: Produção: Flávio R. Tambellini, 2001. 73 min. Colorido.
· LA SALLE NOIR, Análise de “Janela da Alma”. Disponível em: http://www.virose.pt/blog/noir/?p=282. Acesso em 18 de Jun. 2015.
· MATTOS, Francine, Evgen Bavcar, o fotógrafo do (in)visível. Disponível em: http://fotografeumaideia.com.br/site/fotografos/inspiracoes/352-evgen-bavcar-o-fotografo-do-in-visivel. Acesso em; 17 de Jun 2015.
· WIKIPEDIA, Janela da Alma, disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Janela_da_Alma. Acesso em: 17 de Jun.20015
· WIKIPEDIA, João Jardim. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Jardim. Acesso em 18 de Jun.2015.
· WIKIPEDIA, José Miguel Wisnik. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Miguel_Wisnik. Acesso em: 18 de Jun. 2015.


André Stanley alcunha de André Luiz Ribeiro é professor e escritor; autor do livro “O Cadáver” (Editora Multifoco – 2013); É membro efetivo da Asso. Dos Historiadores e pesquisadores dos Sertões do Jacuhy desde 2004. Atua hoje como professor e pesquisador de História Cultural. Também leciona língua inglesa, idioma que domina desde a adolescência, Administra e escreve para os blogs: Blog do André Stanley (blogdoandrestanley.blogspot.com) – Sobre História, política, arte, religião, humor e assuntos diversos e Stanley Personal Teacher (stanleypersonalteacher.blogspot.com) onde da dicas de Inglês e posta exercícios para todos os níveis.

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