Esta
série da Netflix tem potencial para ser uma peça de destaque entre as melhores
séries de investigação criminal do catálogo. Inacreditável (Unbelievable)
trata de traumas irreversíveis em vítimas de estupro e da dificuldade
encontrada por grande parte dessas vítimas que são desacreditadas por
autoridades despreparadas para realizarem um interrogatório.
A
série acompanha duas histórias simultaneamente, em uma delas temos duas
detetives do estado do Colorado que ao cruzar dados de suas investigações
começam a traçar o perfil de um estuprador em série e se depararem com
evidências comportamentais e materiais que ligam alguns casos que elas vinham
investigando. Em paralelo a essa investigação, podemos acompanhar também a
história de uma jovem de 18 anos que denunciou um estupro sofrido por ela no
apartamento em que morava em Lynwood, no estado de Washington. Durante o
interrogatório foi convencida pelos policiais de que não havia nada de
substancial que pudesse realmente identificar que um estuprador estivesse no
quarto da vítima. A vítima retira sua queixa e logo em seguida é processado
pela cidade por falso testemunho.
A
trama foi baseada em um evento real que ocorreu entre 2008 e 2011, quando uma
série de mulheres relataram terem sido estupradas durante a noite enquanto
dormiam. Todos os casos revelaram um mesmo perfil de estuprador e um mesmo modus
operandi.
Depois
de uma longa investigação, as detetives Karen Duvall e Grace Rasmussen
conseguem todas as evidências necessárias para chegar até o criminoso que foi
preso e condenado a mais de 300 anos de prisão pelos crimes.
Visualmente
a série explora bastante os modernos quartéis generais da polícia investigativa
do Colorado. Salas grandes e arejadas, equipadas com computadores modernos e
monitores enormes de alta definição, salas de conferência com mesas de madeira e
iluminação natural provinda de uma janela inteiriça com uma bela visão de parte
da cidade. Não sei se essas instalações correspondem à realidade, mas a
impressão que fica, é de que as delegacias de polícia do interior do Colorado
contrastam totalmente com as caóticas delegacias de polícia de Nova Iorque ou
Los Angeles que víamos nos filmes policiais dos anos 70 e 80.
Creio
que a série, após causar um mal-estar no telespectador, agradará as
representantes dos movimentos feministas, afinal todas a protagonistas são
mulheres e executam um trabalho técnico primoroso no que diz respeito a
investigação criminal. Socialmente falando a série aborda a dificuldade que as vítimas
de estupro ainda encontram ao denunciar o crime, em alguns momentos são
desencorajadas a fazê-lo. Notamos nitidamente na história de Marie – a jovem de
18 anos que primeiro denunciou ter sido estuprada – que há uma crítica
contundente à cultura machista que ainda persiste entre os coletores de
depoimentos nos departamentos de polícia por todo o EUA. Afinal de contas, foi
preciso que duas detetives, mulheres, se unissem para desvendar o crime, e
colocar o criminoso atrás das grades, caso contrário o estuprador estaria solto
pelas ruas violentando mais mulheres.
Os
personagens masculinos da série são apáticos, aparecendo em segundo plano como
meros apoios retóricos e em sua maioria são incompetentes, como os detetives
que primeiro tomaram o depoimento de Marie e mesmo depois dos vários relatos da
vítima e de evidências materiais do crime decidiram negligenciar tudo para
manter um discurso que já tinham previamente, a de que a menina já tinha um
histórico de má conduta e que realmente ela estava querendo chamar a atenção, o
que levou a depoente a mudar o discurso e negar ter sido vítima de um crime
cuja denuncia só lhe rendeu o escárnio e desaprovação dos agentes públicos que
tinham por dever defende-la.
Marie
representa a garota rebelde e sem pais e
que por isso tem uma adolescência conturbada, mas mesmo assim consegue
trabalhar para se sustentar e mesmo debaixo de toda sorte de adversidades
provindas de sua situação de desamparo e exclusão social – há momentos que
parece que Marie simplesmente é tragada por uma sucessão de eventos traumáticos
dos quais ele jamais conseguirá sair e tudo que já era ruim tende sempre a
piorar – ela ainda é capaz de seguir em
frente sem a ajuda de ninguém, somente pelo seu mérito e personalidade forte.
A
série foi baseada no artigo "An Unbelievable Story of Rape” (Umainacreditável história de estupro) publicado em 2015 pelos jornalistas T.
Christian Miller e Ken Armstrong que trabalharam separadamente na investigação
da história e em 2016 receberam o prêmio Pulitzer por esse trabalho. O artigo se
tornou um livro chamado “A False Report: A True Story of Rape in America” (no
Brasil: Falsa acusação – Uma história verdadeira -Editora Leya).
Os
nomes das personagens foram alterados na série, não se sabe porque, sabemos no
entanto, que Marie é um dos sobrenomes da jovem que denunciou o estupro pela
primeira vez e foi a inspiração para a personagem Marie Adler (Kaitlyn Dever).
As detetives Rasmussen (Toni Collette) e Duvall (Merritt Wever) que desvendaram
o caso e prenderam o criminoso são baseados em duas detetives reais do estado
do Colorado, respectivamente Edna Hendershot e Stacy Galbraith.
A série
é muito promissora e certamente será o estopim de muitos comentários de amor e
ódio nas redes sociais, afinal trata de um tema difícil de digerir na sociedade
moderna, a negligência quase que institucionalizada em relação a mulheres que
decidem denunciar um estupro.
Fontes:
André Stanley é escritor e professor de História, Inglês e Espanhol, autor do livro "O Cadáver", editor dos blogs: (Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher). Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.
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