Até que ponto uma obra literária pode nos esclarecer sobre a sociedade retratada pelo autor?
Mansfield Park Kindle Edition (Amazon) |
Mansfield Park (Palácio das Ilusões) de Patricia Rozema de 1999 |
As obras da autora inglesa Jane Austen, são popularmente associadas a histórias de amor vividas por suas protagonistas mulheres, sobretudo após um período onde o cinema hollywoodiano passou a interessar-se pela autora e a criar releituras para o cinema de suas obras. Para alguns analistas, as histórias de amor, apesar de cativantes e extremamente vendáveis no formato cinematográfico, não são o cerne da escrita de Austen e muitos dos elementos abordados pela autora acabaram sendo ignorados pelo grande público.
Segundo
Helena Kelly, professora de literatura em Oxford “quase tudo que se sabe sobre
Jane Austen está errado”. Pesquisadora de Jane Austen, Kelly lançou em 2017 o
livro “Jane Austen: The Secrete Radical (Jane Austen: A radical secreta) onde
defende a tese de que as obras de Austen trazem muito mais à tona uma crítica à
sociedade de seu tempo do que simples e rasas histórias de amor. E uma das
obras citadas por Kelly, que possuiria fortes evidências de que Jane Austen foi
uma crítica mordaz da escravidão, por exemplo, é “Mansfield Park”, romance que
por sinal, não é um dos mais populares de Austen se compararmos com “Orgulho e
Preconceito” e “Persuasão”.
MansfieldPark – hoje um dos clássicos da literatura inglesa – foi publicado em 1814 e conta
a história de uma jovem que é adotada por seus parentes abastados como forma de
aliviar os custos de sua família original. Será que por trás desse trama aparentemente
trivial – e de certa forma corriqueira na literatura – onde uma menina pobre, sofrendo
as desavenças de sua condição em meio a uma família de posses, se esconde uma visão
refinada da autora sobre a sociedade aristocrática em que vivia? É isso que
pretendemos analisar neste presente trabalho, comparando a obra original de
Austen com a adaptação para o cinema da diretora Patricia Rozema e com suporte
teórico de alguns pesquisadores da literatura inglesa.
A adaptação
cinematográfica de Mansfield Park
Cena do filme de Patricia Rozema de 1999 |
É necessário recorrer como ponto de comparação a obra cinematográfica “Mansfield
Park” (no Brasil, Palácio das ilusões), filme escrito e dirigido por Patricia
Rozema em 1999. Nesta adaptação para o cinema a diretora canadense optou por
tratar com mais ênfase a escravidão, que não é tratada de forma explícita na
obra de Jane Austen. Mas a grande controvérsia gerada pelo filme foi a reconstrução
da protagonista Fanny Price, que ao contrário da heroína passiva e apática da
obra de Austen passa a ter voz ativa e se posicionar diante das adversidades
que surgem a sua frente.
Segundo Alison Shea, em seu artigo intitulado:
“’I am a wild beast”: Patricia Rozema’s Forward Fanny’ (“’Eu sou um animal
selvagem’”: A ousada Fanny de Patricia Rozema), a versão cinematográfica de Rozema
é enfraquecida por uma leitura equivocada da diretora – que também é a
roteirista do filme – que modifica radicalmente a trama criada por Austen, como
podemos notar abaixo:
[…] A versão cinematográfica de Mansfield Park de
Rozema fica enfraquecida tanto pela interpretação incorreta da relação entre
silêncio e personagem quanto pelo fracasso no filme em modificar
suficientemente aspectos da trama e dos personagens do romance que validam as
qualidades que Rozema despreza.
A crítica de Alison Shea vai além ao estabelecer que
“Prejudicado por preconceitos que vêem o silêncio como
uma marca de fragilidade e tolice, Rozema considera Fanny uma personagem
subdesenvolvida". (SHEA, p.52)
Outro
pesquisador de Austen, David Monaghan, diz que Rozema comete um anacronismo ao
recriar sua Fanny Price em sintonia com valores apreciados no século XXI, onde
o discurso feminista já se tornou parte da pauta social. Assim podemos notar em
sua citação:
Ao que tudo indica, Patricia
Rozema atribui os valores humanistas liberais do final do século XX à sua
heroína do início do século XIX, porque ela acredita que essas qualidades a
tornarão mais aceitável para um público moderno do que uma personagem que não
demonstra qualquer desaprovação óbvia a um tio, que é sexista, esnobe e dono de
escravos.
Monaghan,
no entanto, defende a criação de Rozema dizendo que seu filme se aproxima mais
de “um trabalho artístico independente do que uma adapitacão do romance de Austen". (MONAGHAN, 2006, p.60) É
possível notar, mesmo na discordância entre os dos analistas supracitados –
afinal, Shea faz uma crítica mordaz ao filme, enquanto Monaghan o defende como
uma obra independente do livro – que a heroína do filme de Rozema não é a Fanny
Price criada por Austen no início do século XIX.
Os debates
acerca de Mansfield Park não estão restritos ao comportamento da protagonista. Há
algo mais profundo na estrutura do romance que parece ter sido negligenciado
por mais de um século. Em sua obra “Cultura e Imperialismo” de 1993, o crítico
literário palestino-americano Edward Said analisa Mansfield Park dentro de uma
ótica pós-colonialista, expondo aspectos implícitos na obra que aludem a
escravidão e sua importância na manutenção da estrutura colonial.
Edward Said |
Quem lê de
forma descompromissada o romance de Austen, pode nem perceber essa alusão,
afinal são poucas as vezes que a narradora expõe ao leitor a ausência de sir
Thomas, por estar ele em Antígua. Said diz que: “Os Bertram não poderiam
existir sem o tráfico de escravos, o açúcar e a classe dos fazendeiros
coloniais.” (SAID, 2011) Ou Seja, é justamente a ausência de Sir Thomas no
enredo que demonstra o poderio imperialista inglês no início do século XIX,
afinal, “o que sustenta materialmente essa vida (em Mansfield Park) é a
propriedade de Bertram em Antígua, que não está indo muito bem.” (SAID, 2011)
Jane
Austen se refere à escravidão em um momento específico do romance que transcreverei
abaixo:
“Você não me ouviu perguntar sobre o tráfico negreiro na noite passada?”
“Eu ouvi si e tinha esperança de que o assunto fosse comentado pelos outros. Você agradaria mais se tivesse continuado perguntando.!
“Eu até que queria, mas houve um silêncio mortal! (AUSTEN, 2010, p.122,123)
Neste diálogo entre Fanny e seu primo Edmund, a
autora expõe de forma muito sutil que assunto escravidão pertencia ao seu
repertório de conhecimento. Principalmente quanto usa a frase “Silêncio mortal”
para se referir à reação de seus parentes quando explicitou uma dúvida sua. No
entanto, se Jane Austen estava ciente da utilização de mão-de-obra escrava, por
que não mencionou de forma explicita em seu romance na forma de uma crítica
social? Sobre isso Said vai dizer que:
A fim de ler obras como Mansfield Park com maior acurácia, é preciso ver que, de modo geral, elas resistem ou evitam esse outro contexto (do surgimento de uma visão pós-colonial), o qual, porém, não pode ser inteiramente dissimulado pela abrangência formal, a honestidade histórica e a sugestionabilidade profética desses romances. Com o tempo, já não se faria um silêncio mortal quando se comentasse a escravidão, e o assunto se tornaria fulcral para uma nova compreensão do que era a Europa. (SAID, 2011)
Said conclui
que Mansfield Park – e outros romances da autora de certa forma – demonstra que
Jane Austen justifica a atuação do Império em suas relações com as colônias, e
expõe a cultura doméstica desse tipo de relação, como veremos na citação abaixo:
Tendo lido Mansfield Park como parte da estrutura de uma aventura imperialista em expansão, não podemos simplesmente devolvê-lo ao cânone das “grandes obras-primas literárias” — ao qual sem dúvida pertence — e o deixar lá, sem mais. Em vez disso, creio eu, o romance inaugura de maneira firme, ainda que discreta, um vasto campo de cultura imperialista doméstica sem a qual não seriam possíveis as subsequentes aquisições territoriais britânicas. (SAID, 2011)
Como
vemos, as visões de Said na crítica do romance Mansfield Park, de certa forma
inauguram uma visão pós-colonialista na forma de analisar esta obra e a literatura
inglesa de uma forma geral. Podemos notar que Patricia Rozema teve acesso a essas
ideias ao escrever o roteiro para sua versão cinematográfica de Mansfield Park.
Afinal fica nítido na dramática cena (1:27:27) onde Fanny encontra um caderno
de desenhos de Thomas, o primogênito que esteve com o pai cuidando dos negócios
em Antígua. Os desenhos mostram que as práticas de Sir Thomas na colônia envolviam
açoitamentos, tortura, estupro e toda sorte de violência praticadas aos seus
escravos.
Neste sentido podemos dizer que Patricia
Rozema talvez iluminada pelas ideias de Edward Said, enxergou as lacunas
deixadas na penumbra por Jane Austen em seu romance original, utilizando-se desses
elementos de forma explícita em seu filme destinado a um público já familiarizado
com as lutas abolicionistas e as conquistas históricas deste período.
Na contramão do pensamento de Said, Hellena Kelly atribui um caráter abolicionista e militante à Jane Austen quando diz que:
Me surpreendi quando notei referências muito frequentes e óbvias à escravidão em Mansfield Park. Qualquer pessoa que soubesse ler na época sabia que Lord Mansfield era presidente do Supremo Tribunal inglês, e que contribuiu imensamente para a abolição do tráfico de escravos. Seria impossível não fazer a ligação. Além disso, a Sra. Norris, vilã da história, teve o nome inspirado em Robert Norris, um infame traficante de escravos. Eu já estava convencida de que havia ligações com o tema no romance, e muitos críticos já haviam apontado isso, mas quando eu me foquei em encontrar essas referências, me pareceu clara a crítica de Austen à escravidão. Isso me deixou perplexa, porque muitas pessoas leem sua obra apenas pensando no romance e no protagonismo feminino, que de longe não são os únicos ingredientes de seus escritos. (KELLY, 2017)
Notamos
que a obra Mansfield Park de Jane Austen, longe de ser a simples história de uma
Cinderela do período colonial, está cheio de referências aos modos de vida da sociedade
de sua época. E que um clássico da literatura sempre é redescoberto de tempos
em tempos e novos modelos de reflexão sobre os temas propostos por ele vêm à
tona.
A
importância inegável desta obra não diz respeito apenas ao território da teoria
literária, mas também para a história da literatura e da História propriamente
dita, afinal nesta obra entramos em contato com temas ainda muito em voga na sociedade
moderna e nos deixam lacunas que atiçam nossa capacidade reflexiva. Afinal Jane
Austen viveu durante um período de transição marcado por grandes transformações
na nossa sociedade.
Referências
bibliográficas
- AUSTEN, Jane. Mansfield Park. São Paulo: Landmark, 2010.
- KELLY, Hellen. Jane Austen, ‘escondeu’ críticas sociais em seus romances, diz pesquisadora. Cult, 17 jul. 2017. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/jane-austen-escondeu-criticas-em-seus-romances/> Acesso em: 31 Out. 2019.
- MANSFIELD PARK (Palácio das Ilusões). Direção: Patricia Rozema, Produção: Sarah Curtis: HAL Films, 1999, 1 DVD.
- MONAGHAN, David. In Defense of Patricia Rozema's Mansfield Park. Persuasions: The Jane Austen Journal;2006, Issue 28, p59. 2006
- SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
- SHEA, Alison. “I am a wild beast”: Patricia Rozema’s Forward Fanny. Persuasions: The Jane Austen Journal;2006, Issue 28, p52. 2006.
André Stanley é escritor e professor de História, Inglês e Espanhol, autor do livro "O Cadáver", editor dos blogs: (Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher). Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.
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