sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Mansfield Park: Quase tudo que se sabe sobre Jane Austen está errado

Até que ponto uma obra literária pode nos esclarecer sobre a sociedade retratada pelo autor?

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Mansfield Park Kindle Edition (Amazon)


Mansfield Park (Palácio das Ilusões)
de Patricia Rozema de 1999

As obras da autora inglesa Jane Austen, são popularmente associadas a histórias de amor vividas por suas protagonistas mulheres, sobretudo após um período onde o cinema hollywoodiano passou a interessar-se pela autora e a criar releituras para o cinema de suas obras. Para alguns analistas, as histórias de amor, apesar de cativantes e extremamente vendáveis no formato cinematográfico, não são o cerne da escrita de Austen e muitos dos elementos abordados pela autora acabaram sendo ignorados pelo grande público.

Segundo Helena Kelly, professora de literatura em Oxford “quase tudo que se sabe sobre Jane Austen está errado”. Pesquisadora de Jane Austen, Kelly lançou em 2017 o livro “Jane Austen: The Secrete Radical (Jane Austen: A radical secreta) onde defende a tese de que as obras de Austen trazem muito mais à tona uma crítica à sociedade de seu tempo do que simples e rasas histórias de amor. E uma das obras citadas por Kelly, que possuiria fortes evidências de que Jane Austen foi uma crítica mordaz da escravidão, por exemplo, é “Mansfield Park”, romance que por sinal, não é um dos mais populares de Austen se compararmos com “Orgulho e Preconceito” e “Persuasão”.


MansfieldPark – hoje um dos clássicos da literatura inglesa – foi publicado em 1814 e conta a história de uma jovem que é adotada por seus parentes abastados como forma de aliviar os custos de sua família original. Será que por trás desse trama aparentemente trivial – e de certa forma corriqueira na literatura – onde uma menina pobre, sofrendo as desavenças de sua condição em meio a uma família de posses, se esconde uma visão refinada da autora sobre a sociedade aristocrática em que vivia? É isso que pretendemos analisar neste presente trabalho, comparando a obra original de Austen com a adaptação para o cinema da diretora Patricia Rozema e com suporte teórico de alguns pesquisadores da literatura inglesa.


A adaptação cinematográfica de Mansfield Park

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Cena do filme de Patricia Rozema de 1999


É necessário recorrer como ponto de comparação a obra cinematográfica “Mansfield Park” (no Brasil, Palácio das ilusões), filme escrito e dirigido por Patricia Rozema em 1999. Nesta adaptação para o cinema a diretora canadense optou por tratar com mais ênfase a escravidão, que não é tratada de forma explícita na obra de Jane Austen. Mas a grande controvérsia gerada pelo filme foi a reconstrução da protagonista Fanny Price, que ao contrário da heroína passiva e apática da obra de Austen passa a ter voz ativa e se posicionar diante das adversidades que surgem a sua frente.

Segundo Alison Shea, em seu artigo intitulado: “’I am a wild beast”: Patricia Rozema’s Forward Fanny’ (“’Eu sou um animal selvagem’”: A ousada Fanny de Patricia Rozema), a versão cinematográfica de Rozema é enfraquecida por uma leitura equivocada da diretora – que também é a roteirista do filme – que modifica radicalmente a trama criada por Austen, como podemos notar abaixo:


[…] A versão cinematográfica de Mansfield Park de Rozema fica enfraquecida tanto pela interpretação incorreta da relação entre silêncio e personagem quanto pelo fracasso no filme em modificar suficientemente aspectos da trama e dos personagens do romance que validam as qualidades que Rozema despreza.


A crítica de Alison Shea vai além ao estabelecer que 

Prejudicado por preconceitos que vêem o silêncio como uma marca de fragilidade e tolice, Rozema considera Fanny uma personagem subdesenvolvida". (SHEA, p.52)

Outro pesquisador de Austen, David Monaghan, diz que Rozema comete um anacronismo ao recriar sua Fanny Price em sintonia com valores apreciados no século XXI, onde o discurso feminista já se tornou parte da pauta social. Assim podemos notar em sua citação:


Ao que tudo indica, Patricia Rozema atribui os valores humanistas liberais do final do século XX à sua heroína do início do século XIX, porque ela acredita que essas qualidades a tornarão mais aceitável para um público moderno do que uma personagem que não demonstra qualquer desaprovação óbvia a um tio, que é sexista, esnobe e dono de escravos.


Monaghan, no entanto, defende a criação de Rozema dizendo que seu filme se aproxima mais de “um trabalho artístico independente do que uma adapitacão do romance de Austen". (MONAGHAN, 2006, p.60) É possível notar, mesmo na discordância entre os dos analistas supracitados – afinal, Shea faz uma crítica mordaz ao filme, enquanto Monaghan o defende como uma obra independente do livro – que a heroína do filme de Rozema não é a Fanny Price criada por Austen no início do século XIX.






Edward Said
Os debates acerca de Mansfield Park não estão restritos ao comportamento da protagonista. Há algo mais profundo na estrutura do romance que parece ter sido negligenciado por mais de um século. Em sua obra “Cultura e Imperialismo” de 1993, o crítico literário palestino-americano Edward Said analisa Mansfield Park dentro de uma ótica pós-colonialista, expondo aspectos implícitos na obra que aludem a escravidão e sua importância na manutenção da estrutura colonial. 

Quem lê de forma descompromissada o romance de Austen, pode nem perceber essa alusão, afinal são poucas as vezes que a narradora expõe ao leitor a ausência de sir Thomas, por estar ele em Antígua. Said diz que: “Os Bertram não poderiam existir sem o tráfico de escravos, o açúcar e a classe dos fazendeiros coloniais.” (SAID, 2011) Ou Seja, é justamente a ausência de Sir Thomas no enredo que demonstra o poderio imperialista inglês no início do século XIX, afinal, “o que sustenta materialmente essa vida (em Mansfield Park) é a propriedade de Bertram em Antígua, que não está indo muito bem.” (SAID, 2011)


Jane Austen se refere à escravidão em um momento específico do romance que transcreverei abaixo:


“Você não me ouviu perguntar sobre o tráfico negreiro na noite passada?”
“Eu ouvi si e tinha esperança de que o assunto fosse comentado pelos outros. Você agradaria mais se tivesse continuado perguntando.!
“Eu até que queria, mas houve um silêncio mortal! (AUSTEN, 2010, p.122,123)

Neste diálogo entre Fanny e seu primo Edmund, a autora expõe de forma muito sutil que assunto escravidão pertencia ao seu repertório de conhecimento. Principalmente quanto usa a frase “Silêncio mortal” para se referir à reação de seus parentes quando explicitou uma dúvida sua. No entanto, se Jane Austen estava ciente da utilização de mão-de-obra escrava, por que não mencionou de forma explicita em seu romance na forma de uma crítica social? Sobre isso Said vai dizer que:



A fim de ler obras como Mansfield Park com maior acurácia, é preciso ver que, de modo geral, elas resistem ou evitam esse outro contexto (do surgimento de uma visão pós-colonial), o qual, porém, não pode ser inteiramente dissimulado pela abrangência formal, a honestidade histórica e a sugestionabilidade profética desses romances. Com o tempo, já não se faria um silêncio mortal quando se comentasse a escravidão, e o assunto se tornaria fulcral para uma nova compreensão do que era a Europa. (SAID, 2011)



Said conclui que Mansfield Park – e outros romances da autora de certa forma – demonstra que Jane Austen justifica a atuação do Império em suas relações com as colônias, e expõe a cultura doméstica desse tipo de relação, como veremos na citação abaixo:


Tendo lido Mansfield Park como parte da estrutura de uma aventura imperialista em expansão, não podemos simplesmente devolvê-lo ao cânone das “grandes obras-primas literárias” — ao qual sem dúvida pertence — e o deixar lá, sem mais. Em vez disso, creio eu, o romance inaugura de maneira firme, ainda que discreta, um vasto campo de cultura imperialista doméstica sem a qual não seriam possíveis as subsequentes aquisições territoriais britânicas. (SAID, 2011)



Como vemos, as visões de Said na crítica do romance Mansfield Park, de certa forma inauguram uma visão pós-colonialista na forma de analisar esta obra e a literatura inglesa de uma forma geral. Podemos notar que Patricia Rozema teve acesso a essas ideias ao escrever o roteiro para sua versão cinematográfica de Mansfield Park. Afinal fica nítido na dramática cena (1:27:27) onde Fanny encontra um caderno de desenhos de Thomas, o primogênito que esteve com o pai cuidando dos negócios em Antígua. Os desenhos mostram que as práticas de Sir Thomas na colônia envolviam açoitamentos, tortura, estupro e toda sorte de violência praticadas aos seus escravos.

Neste sentido podemos dizer que Patricia Rozema talvez iluminada pelas ideias de Edward Said, enxergou as lacunas deixadas na penumbra por Jane Austen em seu romance original, utilizando-se desses elementos de forma explícita em seu filme destinado a um público já familiarizado com as lutas abolicionistas e as conquistas históricas deste período.

Na contramão do pensamento de Said, Hellena Kelly atribui um caráter abolicionista e militante à Jane Austen quando diz que: 


Me surpreendi quando notei referências muito frequentes e óbvias à escravidão em Mansfield Park. Qualquer pessoa que soubesse ler na época sabia que Lord Mansfield era presidente do Supremo Tribunal inglês, e que contribuiu imensamente para a abolição do tráfico de escravos. Seria impossível não fazer a ligação. Além disso, a Sra. Norris, vilã da história, teve o nome inspirado em Robert Norris, um infame traficante de escravos. Eu já estava convencida de que havia ligações com o tema no romance, e muitos críticos já haviam apontado isso, mas quando eu me foquei em encontrar essas referências, me pareceu clara a crítica de Austen à escravidão. Isso me deixou perplexa, porque muitas pessoas leem sua obra apenas pensando no romance e no protagonismo feminino, que de longe não são os únicos ingredientes de seus escritos. (KELLY, 2017)



Notamos que a obra Mansfield Park de Jane Austen, longe de ser a simples história de uma Cinderela do período colonial, está cheio de referências aos modos de vida da sociedade de sua época. E que um clássico da literatura sempre é redescoberto de tempos em tempos e novos modelos de reflexão sobre os temas propostos por ele vêm à tona.

A importância inegável desta obra não diz respeito apenas ao território da teoria literária, mas também para a história da literatura e da História propriamente dita, afinal nesta obra entramos em contato com temas ainda muito em voga na sociedade moderna e nos deixam lacunas que atiçam nossa capacidade reflexiva. Afinal Jane Austen viveu durante um período de transição marcado por grandes transformações na nossa sociedade.


Referências bibliográficas


André Stanley é escritor e professor de História, Inglês e Espanhol, autor do livro "O Cadáver", editor dos blogs: (Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher). Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.

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