sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Literatura inglesa - Fanny Price vs. Jane Eyre




Jane Austen e Charlotte Brontë apesar de não serem contemporâneas entre si – Brontë nasceu no ano anterior à morte de Austen – representam, cada uma a sua maneira, o protagonismo feminino da literatura inglesa do século XIX. Nossa intenção com este artigo é fazer uma análise comparativa entre duas personagens criadas por estas escritoras usando o prisma da crítica à sociedade aristocrática. No decorrer da análise entraremos em contato com o fazer literário de ambas autoras e suas diferentes apropriações da realidade. 

Fanny Price, protagonista de Mansfield Park, romance de Austen de 1814 e Jane Eyre que dá nome ao romance publicado por Charlotte Brontë em 1847, são protagonistas que partem de um mesmo mote, uma “órfã”, de status social menos favorecido, que é enviada para ser criada por suas tias abastadas, vivem uma infância marcada pelo desprezo e o preconceito, e que ao final da história conseguem superar suas adversidades e terminam com seu príncipe encantado. No entanto, longe de serem Cinderelas, as duas heroínas representam muito mais do que uma lição de moral de um conto de fadas e acumulam mais diferenças do que semelhanças entre elas.


“Então é melhor que a menina fique conosco”, disse Lady Bertram, com grande tranquilidade. Após um breve momento de silêncio, Sir Thomas completou com dignidade, “Sim, que esta casa seja o seu lar. Tentaremos cumprir com o nosso dever para com ela. Ela terá ao menos a vantagem de ter companheiros da sua idade e uma professora permanente”. (AUSTEN, 2010, p. 11)



Este diálogo demonstra a decisão tomada pelos Bertrams de acolher a pequena Fanny Price, em Mansfield Park, sua propriedade. Podemos notar que ao dizer, “ela terá ao menos a vantagem de ter companheiros da sua idade e uma professora permanente” Sir Thomas Bertram infere que está praticando um ato de caridade ao trazer uma menina de uma família pobre para desfrutar das vantagens de sua propriedade e da companhia dos filhos. No entanto, mais adiante Sir Thomas declara que,

Haverá uma questão bastante difícil para nós, Mrs. Norris! [...] A adequada distinção que deverá ser feita entre as meninas, enquanto elas crescem: como preservar na mente de minhas filhas a consciência do que elas são sem que inferiorizem a prima? E como fazê-la lembrar que ela não é uma miss Bertram sem que isso a faça se sentir humilhada? (AUSTEN, 2010, p.11)

            A preocupação de Sir. Thomas é bem pertinente, afinal, explicita que Fanny, apesar de ter a mesma educação das outras filhas, deverá ser constantemente lembrada que não é uma Bertram e que de alguma forma deve aos Bertrams pela caridade destes em relação a ela. Essa “dívida” será sempre evidenciada principalmente na relação entre Fanny e sua tia Mrs. Norris, que passará praticamente todo o romance colocando sua sobrinha a par de sua pequenez social e seu dever para com a família Bertram, dizendo coisas como: “acredito que ela seja uma moça muito obstinada e ingrata se não fizer o que a tia ou as primas lhe pediram. Realmente é muito ingrata, levando em conta quem é e o que ela é” (AUSTEN, 2010, p.95). Devemos notar que a declaração “levando em conta quem é e o que ela é” tem um peso retórico bem forte, demonstrando que sua tia Mrs. Norris parece o que? bossy? em expor a todos a origem inferior da jovem Fanny.

            Fanny está à margem das discussões familiares, permanece apagada no primeiro terço do romance, tendo sua presença evidenciada através das falas de outros personagens. Nota-se aqui a primeira grande diferença entre a escolha textual das duas autoras analisadas. Jane Austen usa um narrador onisciente que direciona o olhar do leitor para as ações. Em Jane Eyre, Charlotte Brontë se utiliza do recurso da narração em primeira pessoa. A própria protagonista narra sua história de abandono e repressão vivendo na casa de sua tia Mrs. Reed, através de flashbacks. Afinal, quem narra a história é uma Jane Eyre mais velha que, como em um livro de memórias, relembra sua vida pregressa. Trata-se de um romance de formação – Bildungsroman – que retrata a trajetória da personagem desde sua mais tenra idade até o final feliz.

            Jane Eyre, ao contrário de Fanny Price, tem uma postura mais ativa e combativa em relação a sua família adotiva: “Garoto cruel e perverso! [...] Você parece um assassino, um feitor de escravos... parece os imperadores romanos!” (BRONTË, 2016, p. 19). Assim se dirige Jane Eyre ao seu primo John Reed, depois que este a atinge com um livro.

“Não tem nada que ficar pegando nossos livros, mamãe diz que você é uma dependente. Não tem dinheiro; seu pai nada lhe deixou; deveria estar pedindo esmolas, e não vivendo aqui com filhos de cavalheiros como nós, comendo a mesma comida e vestindo as mesmas roupas que mamãe lhe dá.” (BRONTË, 2016, p.19)

É possível notar nesta fala de John Reed que o garoto é bem claro ao expor sua visão sobre o seu lugar e o de sua prima. Mesmo nas palavras de uma criança, podemos ver que isso por si só já constitui uma crítica ao modo de pensar da sociedade da época, que de tão retrógrado, somente pode fazer sentido na mente pragmática e sem filtros de uma criança. Notamos que ambas as autoras, de certa forma, criticam o desprezo dirigido às pessoas de uma classe social considerada subalterna. É um bom ângulo comparar Mrs. Norris e John Reed.

Tanto Jane Eyre quanto Fanny Price sofrem preconceito e são reprimidas pelos seus familiares ricos, no entanto, quando falamos da primeira, notamos que Jane Austen mostra um abuso mais sutil, exposto ao leitor por meio de seus afazeres domésticos e das incongruências ditas pela sua tia Mrs. Norris. Já em Jane Eyre, notamos os abusos de forma mais vigorosa, e a reatividade da protagonista cria uma atmosfera de intolerância que impossibilita Jane Eyre de fazer parte da família. Muito bom

Fanny Price demonstra ser uma figura dependente de seu limitado espaço e não almeja nada além do que pode ver, enquanto Jane Eyre quer ir além, conhecer o que jamais viu. “O que eu quero? Um lugar diferente, uma nova casa, cercar-me de novos rostos, sob novas circunstâncias. Desejo isso porque é inútil desejar coisa melhor. Como as pessoas fazem para conseguir outro lugar? (BRONTË, 2010, p. 123). Assim reflete Jane Eyre consigo mesma, sobre sua vontade de conhecer novas terras. Já que vc fez essa comparação e trouxe um trecho de JE, seria interessante um trecho de MP para mostrar a visão de Fanny.

A diferença na construção das duas personagens diz muito a respeito do estilo de escrita das duas autoras. Com exceção da partida de Fanny para a casa de seus pais, Jane Austen limita seus personagens a Mansfield Park e vez ou outra faz referências a algum outro lugar, mas não os descreve, este era seu estilo  de escrever. Em uma carta dirigida a sua sobrinha Anna Lefroy em 1814, ela diz, “três ou quatro famílias  em uma vila do interior é a melhor coisa parase trabalhar.” (AUSTEN, 1814)[1]. Charlotte Brontë, por sua vez, era crítica a esse tipo de limitação espacial, tanto que em uma carta a seu editor G.H. Lewes revela o que achou de um dos grandes sucessos de Jane Austen, Orgulho e Preconceito (1813):





As nossas duas protagonistas são figuras distintas que revelam importantes divergências entre as duas autoras, no entanto, também dizem bastante sobre a sociedade aristocrática em que viviam. No caso de Charlotte Brontë estamos falando do período vitoriano, comumemente associado a um conservadorismo exacerbado. Brontë parece reagir a essa concepção de mundo construindo uma personagem feminina incumbida de quebrar paradigmas sociais e confrontar de forma ousada os padrões estabelecidos até então.

Jane Austen publicou todos os seus romances nas primeiras décadas do século XIX, um período ainda marcado pelo domínio do romantismo. A autora se posiciona criticamente diante deste movimento exacerbadamente idealista, criando personagens com alta carga de realismo, envolvidos em tramas domésticas e triviais, mostrando o ambiente aristocrático com todos os seus vícios e padrões sociais, indiferentes aos aspectos políticos e mudanças sociais do período. Ao contrário de Charlotte Brontë que destilava sua crítica de forma apaixonada e explicita, Austen apelava à sutileza e, de certa forma, Fanny Price é a mais sutil das protagonistas de Austen. 


[1] Carta de Jane Austen à sua sobrinha Anna Lefroy (18-09-1814) – Original: “Three or four families in a country village is the very thing to work on, and I hope you will do a great deal more, and make full use of them while they are so very favourably arranged.”


[2] Carta de Chalotte Brontë à seu editor G. H. Lewes (12-01-1848) Original: “An accurate, daguerreotyped portrait of a commonplace face a carefully-fenced, highly-cultivated garden, with neat borders and delicate flowers; but no glance of a bright, vivid physiognomy, no open country, no fresh air, no blue hill, no bonny beck. I should hardly like to live with her ladies and gentlemen, in their elegant but confined houses."





Referências:
AUSTEN, Jane. Mansfield Park. São Paulo: Landmark, 2010.

_____________. Letters of Jane Austen -- Brabourne Edition: Letters to her niece Anna Austen Lefroy, 1814-1816. Disponível em: <https://pemberley.com/janeinfo/brablt16.html> Acesso em: 12 dez. 2019.

BLAKEMORE, Erin. Sorry, but Jane Eyre Isn’t the Romance You Want It to Be. Disponível em: <https://daily.jstor.org/sorry-but-jane-eyre-isnt-the-perfect-romance-you-want-it-to-be/> Acesso em: 12 dez. 2019.

BRONTË, Charlotte. Jane Eyre. São Paulo: Landmark, 2016.

________________. The Brontë Sister’s – A true Likeness: Charlotte Brontë & Photography. Disponível em: <https://brontesisters.co.uk/Charlotte-&-Photography.html> Acesso em: 12 dez. 2019.

PRIOR, Karen Swallow. Jane Eyre and the Invention of the Self: Disponível em:  <https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2016/03/how-jane-eyre-created-the-modern-self/460461/> Acesso em: 12 dez. 2019.

SHUTTLEWORTH, Sally. Jane Eyre and the 19th-century woman. Disponível em: <https://www.bl.uk/romantics-and-victorians/articles/jane-eyre-and-the-19th-century-woman> Acesso em: 12 dez. 2019.


André Stanley é escritor e professor de História, Inglês e Espanhol, autor do livro "O Cadáver", editor dos blogs: (Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher). Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.

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