quinta-feira, 1 de abril de 2021

Orlando - A androginia e a construção do feminino e do masculino no romance de Woolf


Orlando, edição italiana


As questões de Gênero – Um olhar sociológico



    No campo da sociologia, há tempos, há um esforço para entender a masculinidade e a feminilidade como construtos sociais em uma relação geralmente binária de poder, onde o homem historicamente ocupa uma posição dominante em relação à mulher, o que a socióloga australiana, Raewyn Connell, veio a chamar de “Masculinidade Hegemônica” em uma referência direta a Gramsci, que foi quem elaborou a teoria da “Hegemonia cultural” onde a dominação de uma ideologia de classe se sobrepõe a outra consumando seu domínio como natural e legítimo. No caso da “Masculinidade Hegemônica” proposta por Connell, há uma “prática de gênero que encarna a resposta correntemente aceita ao problema da legitimidade do patriarcado, a que garante (ou que se toma para garantir) a posição dominante dos homens e a subordinação das mulheres.” (CONNELL apud. CARVALHO, 2009, p.?)





Sexo Vs. Gênero


    Para Aline Sanfelici “enquanto sexo refere-se a genitália (que caracteriza o sujeito como homem ou mulher), o gênero não necessariamente corresponde ao sexo, sendo na verdade uma construção e um processo.” (SANFELICI,2009) Dessa forma, quando falamos em questões de gênero estamos nos referindo a uma construção social em processo que envolve fatores externos às definições biológicas de sexo. É nesse sentido que Simone de Beauvoir diz que



"Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produtor intermediário entre o macho castrado que qualifica de feminino." (BEAUVOIR)



    Na mesma linha, no entanto falando sobre “masculinidades”, Raewyn Connel, irá expor o papel da escola na consolidação das ideias de dominação exercida pelo homem. Segundo ela.

    A construção de masculinidades nas escolas [...] está longe da simples aprendizagem de normas como sugerido pela socialização de papéis sexuais’. É um processo com múltiplos caminhos, influenciados pela classe e a etnicidade, produzindo diversos resultados. O processo envolve encontros complexos entre crianças em desenvolvimento, seja em grupos ou individualmente, e uma instituição poderosa, mas dividida e em transformação. (CONNEL apud. CARVALHO, 2009)



    Em suma, as questões de gênero são construtos sociais complexos que nos desafiam a ir além da simples dicotomia entre feminino e masculino. Afinal essa dicotomia não nos deixa muito mais opções além de reproduzir a dominação masculina e a submissão feminina como algo natural, sendo que essa visão é uma criação social aprendida e difundida por meio das instituições e das relações de poder. Em outras palavras, “o gênero é o modo como as culturas interpretam e organizam a diferença sexual entre homens e mulheres.” (YANNOULAS, p. 284, 2011)



Orlando: A androginia como quebra da visão binária de gênero


Divulgação de adaptação teatral de Orlando

    Sendo o gênero uma construção cultural de uma determinada sociedade, seria possível que elementos masculinos e femininos, mesmo contraditórios, se harmonizassem na subjetividade de um mesmo indivíduo, independentemente de seu sexo biológico? Tendo essa questão em mente estamos preparados para analisar as questões de gênero e a mescla de elementos femininos e masculinos no indivíduo, usando como objeto de análise a obra “Orlando, uma biografia” da britânica Virginia Woolf. O livro foi escrito em 1928, durante o período do modernismo inglês. Nesta obra, Woolf retoma o conceito de androginia que segundo Thomas Bonnici “foi usado por Woolf parar descrever o equilíbrio completo dos sentimentos masculinos e femininos. (BONNICI apud. CANASSA, p. 704, 2007)

    Platão em sua obra “O Banquete” é talvez o primeiro a trazer à tona – pelo menos no mundo ocidental – um tipo de hibridismo entre os gêneros. Segundo seu relato, “andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em desonra.” (PLATÃO) Desta obra se emprestou posteriormente o termo “andrógino” que se refere a uma fusão entre elementos masculinos e femininos em um só indivíduo.

    Orlando é apresentado por seu biógrafo e narrador da história, como um jovem que vivia na corte inglesa do final do período elizabetano e nota-se que já na primeira frase do livro a questão do seu gênero é arbitrariamente destacada pelo narrador.



“Ele – pois não podia haver qualquer dúvida a respeito do seu sexo, embora a moda da época contribuísse para disfarçá-lo – estava golpeando a cabeça de um mouro, que pendia das vigas. (WOOLF, p. 9, 2013)



    Notamos que Orlando é descrito como inequivocamente um homem., Isso é particularmente importante, pois introduz uma característica do personagem que aparentemente é imutável. Afinal, homens são homens e mulheres são mulheres. No entanto, este vai se mostrar como o primeiro indício de quebra de paradigmas deste romance no que diz respeito a invariabilidade dos gêneros. No decorrer do romance vamos notar que Orlando funciona como uma síntese das relações de gênero. E a principal característica do gênero, “está na mutabilidade, isto é, na possibilidade de mudança na relação entre homens e mulheres através do tempo. Não se trata de um atributo individual, mas que se adquire a partir da interação com os outros [...]” (YANNOULAS, p. 284, 2011)

    Devemos notar também que há um atributo andrógino característico de uma época. Segundo o narrador, as roupas de um jovem de então (século XVI) não eram marcadores absolutos de gênero , o que em outras épocas seriam mais bem distinguíveis. E a simbologia contida na ação do personagem que golpeava a cabeça de um mouro que estava pendurada nas vigas de um sótão de sua imensa casa diz respeito à forma dominadora como a Inglaterra elizabetana tratava esse grupo étnico, assim como evidencia o engajamento do garoto em atividades masculinas, que ansiava por se tornar um verdadeiro guerreiro como veremos a seguir.


Os pais de Orlando tinham cavalgado em campos de asfódelos, e campos pedregosos, e campos irrigados por estranhos rios, e tinham arrancado muitas cabeças de muitas cores de muitos ombros, e as trouxeram de volta para pendurar nas vigas. Assim também faria Orlando, ele jurou. Mas como tinha só dezesseis anos, e era muito jovem para cavalgar com eles pela África ou pela França [...] (WOOLF, p. 9, 2013)



    Esse elemento guerreiro tem grande relevância na construção da masculinidade de Orlando. Ele reproduzia o que lhe foi ensinado sobre os papéis sociais dos homens em sua sociedade, ou seja, ele aprendia a ser um homem. Afinal de contas, como diz Raewayn Connel “a masculinidade não cai dos céus; ela é construída por práticas masculinizantes, que estão sujeitas a provocar resistência [...] que são sempre incertas quanto a seu resultado. É por isso, afinal, que se tem que pôr tanto esforço nelas.” (CONNEL apud. RABELO, p. 173, 2010)

    Orlando se relacionou com algumas mulheres e era um tipo de cortesão da rainha Elizabeth I. É interessante analisar, por exemplo, seu encontro com Sasha, aquela que viria a ser sua maior decepção amorosa:.


“Quando viu, saindo do pavilhão da embaixada moscovita, uma figura que, fosse homem ou mulher – pois a túnica solta e as calças compridas à moda russa serviam para disfarçar o sexo – encheu-o da maior curiosidade. pessoa, qualquer que fosse o nome ou o sexo, era de estatura mediana, de formas muito esbeltas, e estava vestida dos pés à cabeça em veludo cor de ostra, enfeitado com uma estranha pele esverdeada.” (WOOLF, p. 19, 2013)



    Mais uma vez a questão da vestimenta que disfarçava o sexo. Nesste caso vemos que a figura em questão chamou a atenção de Orlando pela sua características físicas que até então ele não soube identificar se era homem ou mulher. Mas esse evento a princípio parece não preocupar Orlando. Ele simplesmente sentiu interesse por essa figura, como iremos notar a seguir. “Esses detalhes eram obscurecidos pela extraordinária sedução que emanava de toda a pessoa.” (WOOLF, p.19, 2013). Orlando observava atentamente:


Quando o rapaz, porque, ai de mim!, só podia ser um rapaz – nenhuma mulher poderia patinar com tamanha velocidade e vigor – passou por ele quase na ponta dos pés, Orlando estava pronto a arrancar os cabelos de vergonha, pois a pessoa era do seu próprio sexo e, assim, quaisquer abraços estavam fora de cogitação. (WOOLF, p. 19, 2013)



    Notamos que Orlando, baseado em estereótipos, deduz que a pessoa é um homem. Isso é mais uma evidência das construções do papel e sexual naquele período. Mulheres não patinam tão rápido e vigorosamente, logo é um homem. Quando aparenta ter certeza de que se trata de uma pessoa do seu próprio sexo, ele se sente envergonhado devido a sua própria formação dentro do universo masculino. É possível notar uma postura andrógina do protagonista quando ele lamenta não poder nem mesmo abraçar quem despertou seu interesse. Parece que Orlando não se importa tanto assim com as questões relativas ao sexo da pessoa , ao mesmo tempo que está ciente de seus limites como homem.

    A androginia de Orlando é demonstrada durante todo o romance. Notamos até aqui que ele possui todos os atributos do universo masculino de sua época, ao mesmo tempo em que é uma pessoa sensível com os animais, gosta de poesia e procura estar só. Atributos que não são tão recorrentes em um homem de índole guerreira.

    No desfecho da cena que mostramos há pouco descobrimos que o tal rapaz que patinava rápido “era uma mulher. Orlando fitou-a; estremeceu; sentiu calor; sentiu frio; desejou lançar-se no ar do verão; esmagar bolotas de carvalho embaixo dos pés; atirar seu braço como as faias e os carvalhos.” (WOOLF, p. 19, 2013) Enfim, Orlando se apaixonou por essa princesa russa que em breve o abandonaria. No desenrolar da história ele é enviado a Constantinopla como embaixador e se casa com uma dançarina de origem cigana chamada Rosina Pepita.

    Orlando viveu como um homem grande parte de sua vida e passou por todo aprendizado necessárioa para se transformar em um homem maduro e viveu plenamente como um homem de seu tempo até que, um dia, após um período longo dormindo, ele acorda e se vê mulher.


Orlando havia se transformado em uma mulher – não se pode negar. Mas, em todos os outros aspectos, permanecia exatamente como tinha sido. A mudança de sexo, embora alterasse seu futuro, nada fez para alterar sua identidade. Seu rosto permanecia, como provam os retratos, praticamente o mesmo. A memória dele – daqui em diante, porém, a bem da convenção diremos “dela” em vez de “dele”, e “ela” em vez de “ele” – e a memória dela, então, podia voltar a todos os eventos da sua vida passada sem encontrar qualquer obstáculo. (WOOLF, p.62, 2013)



    Notamos que Orlando se torna mulher, mas não se torna outra pessoa:, é exatamente o mesmo Orlando que vinha sendo biografado desde o início da história com o único “inconveniente” de seu biógrafo ter que mudar todos os pronomes marcadores de gênero. Desse momento em diante, “ele” será “ela”, no entanto suas memórias continuam as mesmas. Orlando não demonstra nenhuma surpresa com o fato de ter se tornado mulher o que ocorreu após a transformação denota isso:



Orlando agora havia se banhado, e vestira aquelas calças compridas e casacos turcos que podiam ser usados por ambos os sexos, indiferentemente; e foi forçada a refletir sobre a sua situação. Que era precária e embaraçosa ao extremo, deve ser o primeiro pensamento de todo leitor que tenha seguido sua história com simpatia. Jovem, nobre, bela, havia acordado para se encontrar em uma situação que não poderia ser mais delicada, para uma jovem dama da sua posição. (WOOLF, p. 62, 2013)



    Nesse momento o narrador deduz que o leitor possa estar chocado com tamanha transformação e aqui ele usa os adjetivos “situação precária e embaraçosa ao extremo” o que podemos supor que o narrador esteja familiarizado com os preconceitos e as concepções de gênero comuns de seu tempo. Segundo Karen Kaivola, “Orlando ao mesmo tempo, responde e se esquiva dos imperativos de gênero e aos códigos sexuais que moldam a cultura ocidental desde a Renascença até os primeiros anos do século XX”. (KAIVOLA, p.235-,236, 1999)

    Orlando que já havia passado pelo aprendizado de ser homem, subitamente precisa aprender a ser mulher.



“Agora, terei que pagar por esses desejos com minha própria pessoa”, refletia; “pois as mulheres não são (a julgar por minha própria e breve experiência do sexo) obedientes, castas, perfumadas e primorosamente vestidas por natureza. Só podem conquistar essas graças – sem as quais não podem desfrutar nenhuma das delícias da vida [...] (WOOLF, p.69, 2013)



Após a transformação, Orlando precisa rever suas ações e suas conceitos. Neste sentido, ter sido homem a deixava desconfortável, pois quando era um jovem rapaz pensava que as mulheres deveriam ser “obedientes, castas e perfumadas”. Em outro episódio Orlando quase se torna a causa de um acidente fatal pela simples displicência com seu vestido.



[...]sacudiu o pé com impaciência, mostrando uma ou duas polegadas da perna. Um marinheiro trepado no mastro, que por acaso olhou para baixo nesse momento, balançou de modo tão violento que perdeu o equilíbrio, e só se salvou por um triz. “Se a visão dos meus tornozelos significa a morte para um sujeito honesto, que sem dúvida tem uma esposa e filhos para sustentar, devo, por humanidade, mantê-los cobertos”, pensou Orlando (WOOLF, p. 69, 2013)



    Neste momento Orlando está voltando à Inglaterra, agora como mulher e notamos que suas vestimentas, diferentes das roupas de caráter indefinido que usava enquanto estava vivendo com um grupo de ciganos., dDessta vez, Orlando usava roupas de caráter estritamente femininas. Isso tem um significado de grande importância já que as roupas são os marcadores de gênero mais prontamente visíveis no indivíduo. “Embora pareçam apenas frivolidades, as roupas, dizem, tem funções mais importantes do que apenas nos manter aquecidos. Mudam nossa visão do mundo, e a visão que o mundo tem de nós.” (WOOLF. p.82, 2013)


Considerações Finais

    Orlando é um personagem que vive por três séculos acompanhando as mudanças históricas de postura em relação a compreensão do que é ser homem e mulher. Apesar de andrógino, já que possui um corpo feminino e uma história construída como homem, sua sexualidade não é estática. Por vários momentos vemos oscilações na prática de Orlando como ser social: às vezes se aproxima de uma postura masculina e às vezes se acomoda em sua vivência feminina. Para Karen Kaivola,



    Se a identidade de Orlando é andrógina, essa androginia é móvel, não é estática: apresentando não uma suave síntese de oposições, mas sim uma “mescla” mais hermafrodita mais caótica, o gênero de Orlando e seus desejos mudam constantemente. (KAIVOLA, p. 235, 1999)



    Woolf, de alguma forma, implodiu as barreiras entre o masculino e o feminino ao mostrar uma personagem que ao se transformar em mulher mantém sua memória de um período onde se beneficiava da condição de homem em uma sociedade patriarcal. Como diz Bonnici (BONNICI, apud. CANASSA, 2007), Woolf usa a androginia de Orlando “para descrever o equilíbrio completo dos sentimentos masculinos e femininos.” (BONNICI, apud. CANASSA, 2007)



Referências Bibliográficas

·    CANASSA, Lucélia. SANTOS, Adilson. Desconstrução do gênero em Orlando, de Virgiínia Woolf. 2014. (Apresentação de Trabalho/Comunicação).

·         CARVALHO, Marília Pinto de. Raewyn Connell. A Construção de novas identidades de gênero. Revista Educação. Pedagogia Contemporânea 1. Editora Segmento. pp.76-89 set. 2009

·         JUNQUEIRA. Rogério Diniz. A invenção da "ideologia de gênero": a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero. Psicologia Política. vol. 18. nº 43. pp. 449-502 set. – dez. 2018

·         KAIVOLA, Karen. Revisiting Woolf's Representations of Androgyny: Gender, Race, Sexuality, and Nation. Tulsa Studies in Women's Literature, Autumn, 1999, Vol. 18, No. 2 (Autumn, 1999), pp. 235-261. 1999

·         MACHADO, Paula Sandrine. O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) natural. cCadernos pagu (24), janeiro-junho de 2005, pp.249-281.

·         RABELO, Amanda Oliveira. CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS DE GÉNERO ÀS INVESTIGAÇÕES QUE ENFOCAM A MASCULINIDADE. Nome da revista. n.º 21, 2010, pp. 161-176

·         SANFELICI, A. M. . Categorias culturais de identidade em Orlando: Uma biografia, de Virginia Woolf. Estação Literária, v. 4, p. 94-100, 2009.

·         YANNOULAS, Silvia. FEMINIZAÇÃO OU FEMINILIZAÇÃO? APONTAMENTOS EM TORNO DE UMA CATEGORIA. Temporalis, Brasilia (DF), ano 11, n.22, p.271-292, jul./dez. 2011.

·         WOOLF, Virginia. Orlando: Uma biografia. Editora Landmark. São Paulo, 2013




    André Stanley é escritor e professor de História, Inglês e Espanhol, autor do livro "O Cadáver", editor dos blogs: (Blog do André Stanley, Stanley Personal Teacher). Colaborador do site especializado em Heavy Metal Whiplash. Foi um dos membros fundadores da banda de Heavy Metal mineira Seven Keys. Também é fotógrafo e artista digital.

 



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